28 octubre 2006

com o Rei na barriga

Talvez um dia seja rei. Rei das ruas, das pessoas, das almas.
Não vive num palácio e o seu trono é de madeira (às vezes usa uma pequena almofada amarela para se apoiar e prevenir os problemas de coluna). Não tem coroa, nem manto real. Só tem duas empregadas – e uma está de baixa.
Um dia quis ser gestor ou, quem sabe, criar uma empresa sua. Queria queixar-se da situação do país, fugir ao fisco, ter um primo homossexual e, talvez, um filho toxicodepende. Mas não. Nasceu rei.
Não o nomearam nem elegeram, mas ensinaram-no a sê-lo. Ao invés de estudar arquitectura ficou-se pelos ensinamentos da etiqueta, da tradição e da arte de saber fazer crescer o bigode. Nos tempos livres, entre uma aula de equitação e um jantar de cerimónia, aprendia politica, cultura, economia.
Por mero acaso tornou-se um homem culto e tradicional. Quem diria.
Tem um metro e noventa e um falar sibilado, procura um trono, ou uma barriga. Já não se fazem barrigas como antigamente.

26 octubre 2006

Acordar.

Os olhos teimam em fechar e a cabeça cai numa passividade amorfa que une perfeitamente o nada e o vazio.
Não consigo pensar com os cabelos despenteados e com estas calças vermelhas. Aquele perfume de aloé vera e raspas de laranja mistura-se com o meu corpo deitado e aquecido e transporta-me para um mundo tonto onde as línguas se sobrepõem e as olheiras desincham.
Acordaram-me outra vez. Não, não agora que Portugal parecia tão perto e a bota mantinha-se teimosamente real com todos os seus encantos e perturbações. Não agora que o príncipe se tinha mudado para o meu palácio e a minha súbita paixão por chocolates tinha desaparecido. Deixa-me voltar para o escuro dos estores e indiferença dos sonhos.
Cheira a comida. Já disse que não consigo pensar quando acordo.

25 octubre 2006

Palácio Real

Parecia bêbada. Fazia o mesmo trabalho há 23 anos. Tinha sido difícil decorar todas aquelas datas e nomes. Tantos reis, tanta pompa, tantos vasos chineses.
“Eu farei a vossa visita”. Medo. Dizem que esta cidade está dividida em dois pólos opostos: o triangulo do bem e o triangulo do mal. Nunca quis aprofundar muito tal conhecimento mas mantive-me sempre na parte branca. Aquela mulher corcunda, voz esganiçada. Fios de cabelos brancos a correrem pela sua face enrugada onde as olheiras falam por si e descrevem a madeira do pavimento e a madrepérola dos lustres.
De repente ficou tonta. Pediu desculpa e sentou-se. Talvez seja a velhice ou o álcool do almoço, ninguém sabe.Quarenta e dois minutos depois a visita terminou

24 octubre 2006

Gargalhadas

Gargalhadas alcoolizadas, olhos vermelhos, línguas misturadas e musica, muita musica. A hora passa e ninguém dá por ela. Uma garrafa, duas, sete. Alguém caiu ao chão. A porta que abre sem parar. Eu levo um amigo, tu levas outro e a porta impessoalmente está sempre aberta. Chove lá fora.
Foi boa esta ideia de juntar as pessoas às máquinas (e com dois euros ela pode presentear-nos com a sua musica sincronizada de roupa batida); como é divertido dançar com bolhas de sabão. Espero que ninguém confunda o amaciador com o sumo (cheiram tão bem).
Os sabores são ácidos e perturbantes, sensíveis e musicais. Sinto uma música na minha cabeça. Deve ser por isso que o Suíço leva tampões para a discoteca.

21 octubre 2006

Partida.

“Deixei a minha Tânger natal a 13 de Junho de 1325 (segundo o calendário cristão). Tinha vinte e um anos e justifiquei a minha decisão com os argumentos do peregrino. Assim deixei os meus pais, os meus irmãos, os meus filhos, os meus amigos e os meus bens. Parti com a mesma solene tranquilidade do pássaro que abandona o ninho. Só o Altíssimo, o Clemente, o Digno das noventa e nove virtudes conhecia o rumo dos ventos que me empurravam…”
Assim escreveu o xeque Ibn Batutta ao longo dos cento e vinte mil quilómetros que lhe passaram debaixo das plantas do pés.