25 noviembre 2009

A involução

Tínhamos um ar mudado. Como se a vida, de repente, tivesse deixado de ser um momento. Sentíamos aquele peso nas costas das velhas memorias de alegrias instantâneas, de compromissos com o cair da noite, de gargalhadas em troca de copos de plástico.
O mundo tinha voltado atrás, mas a maquineta estragou-se a meio caminho e ficámos ali, perdidos entre a felicidade e o conformismo. Entre o querer ser e aquilo que a vida nos tornou.
Tentámos fingir e repetir, mecanicamente, o passado. A criação ideal que cada um desenhou da sua vida anterior. Da Vida com vê maiúsculo.
Já não havia razão para chorar porque agora as lágrimas seriam profundas, sofridas, existenciais. E todos sabem que o lacrimejar verdadeiro não é para aqui chamado.
Então engole o choro e sorri. Constata, uma vez mais, o fracasso em que te tornaste. O triste processo de involução que empreendeste nos últimos anos. Olha-te na agua espelhada daquele rio urbano e conclui que este não és tu ou, pelo menos, quem tinhas planeado ser.
E, pela primeira vez, não é mais preciso fazer juras de amor ao fim da noite. Elas estão subentendidas naquela dura realidade contada no frio de uma janela aberta durante a madrugada.

09 noviembre 2009

Coisas de meninas

Quando não estás sou diferente. Mais pesada, mais seria, mais Pinóquio construído a partir de uma colher de pau. Então sinto-me perdida num deserto onde os grãos de areia são pensamentos desencadeados, fraccionados de momentos que nunca viverei. Olho à volta e não estás. Outra vez. A música, ou melhor dito, a falta dela, grita de saudades. Descabela-se, tortura-se e tenta cortar os pulsos. Porque sem ti, música é memória.
As recordações impregnam os cheiros, os doces e a repentina vontade de comer batatas fritas às quatro da manhã. Os pensamentos saltam do bom ao mau como num jogo do Marco Pólo. Está quente, cada vez escalda mais. Quero-te perto para podermos espreguiçar os dedos dos pés e adormecer sem dar conta. Se estiveres ao meu lado, sei que posso acordar com as orelhas à mostra e o cabelo sem pentear. Porque tu não te importas, só gozas um pouco comigo. Só um pouquinho para eu fazer aquela cara de zangada que me vai dar tantas rugas no futuro. Rugas de expressão, já que contigo não há cá cremes nem maquilhagem. Para ti isso são coisas de meninas.
Então vem, quando puderes, vem. E deitamos no lado errado da cama e depois arrancamos o carro e só paramos para comprar gomas. E perseguimos casamentos e fazemos um picnic na praça principal. E brindamos com rimas e vestimos calças xadrez. Todo o dia. Todos os dias. Até aos últimos dias.
Mas se não puderes vir agora, não há problema. Eu percebo. Só queria que soubesses que quando não estás, sou diferente. E, às vezes, só às vezes, tenho saudades de mim.

02 noviembre 2009

Sussurros sigilosos de amantes amnésicos

Sei que sabes que sou só um sussurro sigiloso. Que venho e vou voando entre vidas vadias, variadas. Que mudo a cada momento, mas não por má-fé, por mania maluca de misturar-me com o mundo. Entendo que estejas estafado desta emanação de eloquência evasiva. Que queiras quebrar quem se queixa do que quis questionar. Não julgo jogadores jubilados, nem jovens jornalistas jubilosos. Ambos abusaram da amabilidade da ama-seca e aproveitaram-se da amizade amenésica do amor do destino. Despiram-se de datas, dicionários e definições e descolaram num disfarçado deleite de uma vida sem divisas. Bagunçaram o baile dos bibelôs birrentos. E agora queixam-se.
Por isso não podes pensar que procuro penalizar-te por este pavoroso palpite. Isto é apenas a minha ilustre imaginação a improvisar uma identidade idealista. Uma razão de rascunho que resolva este rebuliço que represento. Porque eu e tu, e tu e eu, agora somos apenas isto. Um conjunto de letras repetidas. Uma formula estragada e cacofónica que, estranhamente, para nós, soa-nos a musica. Sussurros sigilosos pronunciados por amantes amnésicos.