06 diciembre 2009

Era melhor

Olhávamo-nos com olhar acostumado. Com remelas nos olhos e bocejo na boca. Criticávamos cada gesto, cada acção, cada tropeço em quem éramos realmente.
Não era amor.
Era uma tarde de inverno a ver filmes pirata e a comer pizzas de ananás. Eram dois telemóveis desligados. Uma música e uma guitarra. Eram massagens nos pés e exposições de domingo. Pequenos-almoços madrugadores. Um beijo na ponta do nariz.
Não era amor. Era melhor.
E então transformámo-nos naquela velha televisão que, mesmo desligada, continua a fazer um zumbido constante. Num gira-discos estragado. Naquele Tolstoi que nunca nos atreveremos a acabar. Somos o lixo do que soubemos ser, os restos daquele que deveria ter sido um final feliz.
Porque o fim nunca é bom. Se fosse bom, seria o começo.

02 diciembre 2009

Mesmo quando não escrevo

Então escreve.
Fecha os olhos, respira fundo e deixa as palavras apoderarem-se de ti. Desenha com elas um piscar de olho cúmplice, um esboçar de um sorriso, uma risadinha matreira. Faz das palavras um ecstasy barato, vicia-os, hipnotiza-os para o segundo parágrafo, o terceiro, o quarto.
Conta-lhes uma história, daquelas fáceis e universais, daquelas que basta substituir o nome para que sejamos nós os protagonistas, das que se tivéssemos o telefone, simplesmente marcaríamos o número, sem pensar mais. Conta-lhes histórias felizes, porque é mentira que o povo gosta de desgraças. O povo gosta de sentir. Mas é mais fácil causar emoções negativas.
Então escreve e narra histórias felizes, apoia causas sociais, constrói a proximidade, ganha o leitor. Diz-lhe o que quer ouvir, mas nem sempre, e quando não, di-lo com jeitinho, com graça, com a humildade de um mero informador. E denuncia, mas não por ti, nem pelo teu nome citado em todas as partes. Vai, escava, desce ao buraco, conquista a fonte e no fim põe na balança. Pergunta-te se o fazes pelo teu ego ou se ajudarás a vida de alguém. Pergunta-te se essa raivinha residual que foste criando contra aquele personagem está a influenciar-te (a resposta será, irremediavelmente, sim). Pergunta, pergunta sempre, porque afinal, isso é o que melhor sabes fazer.
E se já ganhaste o leitor, agarra-te a ele como a cura para a sida. Não o deixes escapar. Cuida o ritmo, atenção às aspas, pontuação correcta e nada de rimas. Não ponhas palavras difíceis, por favor, não. Poupa-nos também daquelas expressões muleta. O leitor agradece.
E agora que estamos a chegar ao final, que já lhe cansámos a vista e aumentamos os índices de leitura, não o abandones assim. Ele espera mais que um “concluí” ou “finaliza”. Ele merece mais. Então escreve e dá-he uma punch line, daquelas redondinhas que fazem rir, gritar, engolir o choro e estremecer. Tudo, para que ao fim de três minutos, ele tenha vontade de virar a página e seguir em frente.
“Por favor, Marina, coño, no dejes de escribir”, dizia o mail de hoje.
E então eu escrevo. Mesmo quando não escrevo.

25 noviembre 2009

A involução

Tínhamos um ar mudado. Como se a vida, de repente, tivesse deixado de ser um momento. Sentíamos aquele peso nas costas das velhas memorias de alegrias instantâneas, de compromissos com o cair da noite, de gargalhadas em troca de copos de plástico.
O mundo tinha voltado atrás, mas a maquineta estragou-se a meio caminho e ficámos ali, perdidos entre a felicidade e o conformismo. Entre o querer ser e aquilo que a vida nos tornou.
Tentámos fingir e repetir, mecanicamente, o passado. A criação ideal que cada um desenhou da sua vida anterior. Da Vida com vê maiúsculo.
Já não havia razão para chorar porque agora as lágrimas seriam profundas, sofridas, existenciais. E todos sabem que o lacrimejar verdadeiro não é para aqui chamado.
Então engole o choro e sorri. Constata, uma vez mais, o fracasso em que te tornaste. O triste processo de involução que empreendeste nos últimos anos. Olha-te na agua espelhada daquele rio urbano e conclui que este não és tu ou, pelo menos, quem tinhas planeado ser.
E, pela primeira vez, não é mais preciso fazer juras de amor ao fim da noite. Elas estão subentendidas naquela dura realidade contada no frio de uma janela aberta durante a madrugada.

09 noviembre 2009

Coisas de meninas

Quando não estás sou diferente. Mais pesada, mais seria, mais Pinóquio construído a partir de uma colher de pau. Então sinto-me perdida num deserto onde os grãos de areia são pensamentos desencadeados, fraccionados de momentos que nunca viverei. Olho à volta e não estás. Outra vez. A música, ou melhor dito, a falta dela, grita de saudades. Descabela-se, tortura-se e tenta cortar os pulsos. Porque sem ti, música é memória.
As recordações impregnam os cheiros, os doces e a repentina vontade de comer batatas fritas às quatro da manhã. Os pensamentos saltam do bom ao mau como num jogo do Marco Pólo. Está quente, cada vez escalda mais. Quero-te perto para podermos espreguiçar os dedos dos pés e adormecer sem dar conta. Se estiveres ao meu lado, sei que posso acordar com as orelhas à mostra e o cabelo sem pentear. Porque tu não te importas, só gozas um pouco comigo. Só um pouquinho para eu fazer aquela cara de zangada que me vai dar tantas rugas no futuro. Rugas de expressão, já que contigo não há cá cremes nem maquilhagem. Para ti isso são coisas de meninas.
Então vem, quando puderes, vem. E deitamos no lado errado da cama e depois arrancamos o carro e só paramos para comprar gomas. E perseguimos casamentos e fazemos um picnic na praça principal. E brindamos com rimas e vestimos calças xadrez. Todo o dia. Todos os dias. Até aos últimos dias.
Mas se não puderes vir agora, não há problema. Eu percebo. Só queria que soubesses que quando não estás, sou diferente. E, às vezes, só às vezes, tenho saudades de mim.

02 noviembre 2009

Sussurros sigilosos de amantes amnésicos

Sei que sabes que sou só um sussurro sigiloso. Que venho e vou voando entre vidas vadias, variadas. Que mudo a cada momento, mas não por má-fé, por mania maluca de misturar-me com o mundo. Entendo que estejas estafado desta emanação de eloquência evasiva. Que queiras quebrar quem se queixa do que quis questionar. Não julgo jogadores jubilados, nem jovens jornalistas jubilosos. Ambos abusaram da amabilidade da ama-seca e aproveitaram-se da amizade amenésica do amor do destino. Despiram-se de datas, dicionários e definições e descolaram num disfarçado deleite de uma vida sem divisas. Bagunçaram o baile dos bibelôs birrentos. E agora queixam-se.
Por isso não podes pensar que procuro penalizar-te por este pavoroso palpite. Isto é apenas a minha ilustre imaginação a improvisar uma identidade idealista. Uma razão de rascunho que resolva este rebuliço que represento. Porque eu e tu, e tu e eu, agora somos apenas isto. Um conjunto de letras repetidas. Uma formula estragada e cacofónica que, estranhamente, para nós, soa-nos a musica. Sussurros sigilosos pronunciados por amantes amnésicos.

18 octubre 2009

Ela

Ela é assim. Aterriza com a sua voz de comando e o seu olhar de controlo de qualidade. Quer saber se a vida vai bem, se o dinheiro chega, se o trabalho satisfaz e se o futuro promete. Pergunta, comenta e, sem que perceba, já se instalou. Já é de casa. A minha casa. Chega de sorriso aberto e abraço apertado, traz uma mala de saudades e uma sacola com os meus jornais preferidos. Porque ela é assim: nunca falha.
Abre a mala e começa a espalhar-se. Enche a casa de vestígios e arranja um buraquinho no armário. Alisa o lençol, reorganiza o quarto e, em cinco minutos, dominou o mundo. O meu mundo. Porque ela é assim. E eu gosto.
Vem sempre com um rolo interminável de histórias narradas a conta gotas. Vem com serões de conversas debaixo do cobertor. Com o corta casaca dos amigos da lista negra. Com as novidades mais escaldantes da apetecível vida alheia.
- E agora vamos dizer mal de quem? – pergunta, para mudar de conversa. E nós mudamos e voltamos a mudar, interminavelmente.
E de repente apercebo-me da minha presença. Que eu estou ali. Que estive ali todo este tempo, ouvindo e admirando este incansável camaleão que faz o mundo hipnotizar-se. Ela anda e nós seguimos, ela diz e nós fazemos, ela ri e nós gargalhamos. Porque ela é assim, tem este incrível dom de fazer-nos girar, rodopiar à sua volta, sem nunca ficarmos tontos. Sem nunca cair.

08 octubre 2009

Equações absurdas

A variável xis tem muito que se lhe diga. Discute-se por ai se x=1 ou x=2. Burros. Hipócritas. Vê-se mesmo que não tinham na adolescência uma professora de matemática que lhes causava febre antes dos testes. À matemática há que ter-lhe medo e respeito. Há que tratar-la com carinho, dedicação e uma boa dose de benuorns.
Porque, meus amigos, se bem me lembro, xis pode ser uma variável nula. E é ai que as cosias se complicam: nessa pequena e ínfima possibilidade de xis não ter par, de que não tenha um equivalente numérico perdido no mundo da álgebra. E se x=0, então temos um problema. Porque equação incompleta é como morangos sem leite condensado ou hambúrguer sem batatas fritas. Um absurdo.
E, quando o incompleto já parece absurdo, descobrimos que os números são tramados e que estas lógicas transcendentais de Pitágoras, Euclides e Arquimedes vão mais longe. Vão sempre tão longe. É que não chega que xis tenha de andar sempre sozinho na rua, suportar o ípsilon com a sua cara metade aos beijos na fila do cinema, ler, todos os dias, as revistas de fofocas com as mais recentes equações matemáticas bem sucedidas. Não, não chega.
O pobre do xis, ¡que miserável!, teve de viver uns longos meses a passear na rua com a companhia do seu zero para descobrir que matemática é coisa seria, com ela não se brinca. Podes pegar no teu zero e colocar-lhe um roupa nova, uma peruca à maneira e um perfume cítrico, podes chamar-lhe “relação moderna” e “felicidade instantânea”, podes mentir, ocultar, esconder o zero debaixo do lençol. Não adianta, porque dizem os deuses da matemática que com 0, com 1, ou com 2, “as equações sem sentido, que não são válidas para nenhum valor, denominam-se absurdas”.
E, convenhamos, ninguém gosta de equações absurdas. Dão negativas nos testes de matemática. A todos menos ao Dali.

29 septiembre 2009

Dizem...

Se calhar ainda somos aquilo que erámos, dizes tu. Uma espuma do passado, um restinho de chocolate no fundo da caneca de Cola-Cao. Se calhar é só porque não sabemos ser diferentes (que desculpa tão apetecível), ou talvez seja porque estamos acomodados, sedentários, rotineiros, medrosos, digo eu.
É mais fácil esconder-se na exteriolidade do nosso problema, na felicidade fácil e superficial, no tempo como salvador do mundo, diz uma voz sábia de por aí. Preferimos evitar os caminhos espinhosos de uma vida nova, fugir da responsabilidade de um ser solitario, buscar no antes uma justificação para o agora, uma esperança para o depois.
Diz o povo que passado vive no museo e que o futuro a Deus pertence. Mas, o presente, o que se vive e não o que se oferece, não devería se tão planeado, pensado, dissecado e digerido, dizemos os dois como forma de auto-convencimento. E, enquanto continuamos a viver neste limbo intemporal, vamos representando as cenas felizes daquele guião de antigamente, dizes tu e eu confirmo.

27 septiembre 2009

O Picasso sabia chorar


Porque para chorar é preciso lágrimas e muitas caixas de lenços.

É preciso ficar verde, azul e amarelo. Babar-se e inchar o nariz.

Para chorar é preciso que dos teus olhos saia um rio de lágrimas. Que a tua cabeça rebente e o tamanho da tua orelha deixe de importar.
O Picasso, esse sim, sabia chorar. Porque se queremos chorar, meus senhores, é preciso um mínimo de dramatismo. E não me venham cá com choraminguices.

23 septiembre 2009

O problema

O problema é que acabámos como um caso mal resolvido. Um caroço entalado na garganta. Aquele gostinho meio amargo, meio azedo, que surge de vez em quando no final de uma conversa ou numa sequência de pensamentos silenciosos.
O problema é que o tal carocito arde fundo e(já) não tem lágrimas, ele doí, bem forte, como aquela distensão muscular que tivemos preguiça de tratar. Mas,pelo menos, conforta-me saber que não é sempre assim, todos os dias o mesmo incómodo. Há largas e extensas temporadas em que a pontadinha adormece. Numa hibernação feliz de hamster pachorrento. Mas nestas andanças da vida não se pode vacilar. Basta uma mínima distracção e, zás, lá surge a dorzinha outra vez.
O problema foi que isto saiu-nos dos planos, transbordou-nos das mãos. Era para ser só mais uma história de noites aborrecidas com novos amigos. Um suspiro dramático num circulo de álcool em copos de plástico. Uma memoria. Um passado distante.
O problema é quando o presente supera a agenda meticulosa que controla os dias. E ali estás tu.Outra vez.
Chegou, felizmente e sem querer, o dia que há anos esperavamos. Quero dar-te um abraço forte e pedir-te desculpa. Quero cuspir-te na cara. Não, escarrar-te e insultar-te e bater-te para que fiquem para sempre no teu corpo as cicatrizes que deixaste em mim.
Quero descobrir se mudaste de perfume. Sussurrar-te uma frase ao ouvido e ver se ainda sabes a resposta. Quero saber da tua mãe, da tua avó, da casa de verão e do gato bebé.
Quero que te lixes e quanto pior melhor. Quero que sofras pelo menos uma lágrima das que eu sofri.
O problema é quando a dor volta e ficamos a pensar em tudo o que podíamos ter feito para evitar a lesão.

02 septiembre 2009

"The more you leave, the less you loose"

A minha vida é uma eterna despedida. Um vai e vem de adeus e olá-caras-novas. O medo de ir e a vontade de voltar. Aquele passo meio dado, meio forçado, meio com vontade de fazer o mundo dar cambalhotas para trás, daquelas que eu nas aulas de ginástica nunca conseguia acabar em pé. E ainda não consigo. No fim saio sempre com um andar cambaleante e um sorriso forçado, esperando que a atitude do atleta melhore a sua pontuação. Engano os mais distraídos, que admiram a dita “coragem”, e comovo os que achavam que a minha vida era um fútil e desentendido abrir e fechar de portas.
E então ouço aquele famoso adeus. Aquele adeus já chorado tantas vezes nas filas de aeroportos, nas mesas de um jantar barato, nas cartas de juras de amizade eternas lidas à beira mar. É um adeus em coro e sem volta.
Já não peço telefones, nem contactos. Nunca olho para trás. Já não tiro fotografias, nem escrevo dedicatórias. Isso é para os novatos. Limito-me a escutar, com a atenção de uma eterna peregrina, os votos de boa viagem, as “certezas” de que terei uma vida melhor. “Vem visitar-me”, “vou visitar-te”. Tu não vens e eu não virei. Eu sei, mas eles parecem ter esperança.
Agarro-me a esses votos e repito-os obsessivamente na minha cabeça.
“Vai correr tudo bem”, dizem-me. E eu decoro. Até ao dia em que não precise mais de palavras encorajadoras. O dia em que encontre o meu lugar nesse mundo de despedidas.
O dia em que, quem sabe, me canse de fugir.

25 agosto 2009

Eu podia parar com isto

Eu podia parar com isto. Podia. Mas nunca to disse. E isso provoca ecos que duram o tempo que tiver de ser. Ecos que cantam dentro de mim e nunca me largam. Vejo-me de saltos altos e cara maquilhada a esfregar-te o meu discurso de gente adulta, crescida, essa que tem cartão visa gold e casa própria. Eu podia parar com isto, a sério. Mas nunca to disse.
Éramos todo um piropo, um olhar desfocado, um “mais que tudo”. Até ao dia. O dia do costume. O dia em que tropeçámos um no outro e descobrimos que os nossos ecos eram pura estética ou preguiça. O dia em que nos tornamos numa piada que ambos achavamos graça. E isso era preocupante.
Agora somos os restos do que fomos e fazemos tudo por esconde-lo. Porque cada um se sente num patamar superior. Convence-se que o faz pelo outro, por amor ao passado, porque fazê-lo não mexe em nada com os seus sentimentos. E cada vez que alguém saca um gesto daqueles do antigamente, o outro pensa em silêncio: “Eu podia parar com isto. Podia. Mas nunca to disse”.
E seguimos em frente.

15 julio 2009

Vou explicar.
Tu estás ai, eu estou aqui.
Eu, no meu canto, no meu livro super interessante.
Tu, destino incerto.
Eu, cozendo e remendando os meus pensamento, na minha alegria quotidiana de pequenos prazeres. Tu, bem longe deles.
Até que te vejo, deixo tudo, e vou falar contigo.
Assim de simples. Só por falar. Só por dizer.
Iman ou rotina?

13 julio 2009

Silêncio

O problema é quando chegam os silêncios. Esses insuportáveis momentos em que as trivialidades deixam de preencher o nosso pensamento. Aí, nos eternos espaços em branco, olhamos para nós e paramos.
Descobrimos que um não sabe o que fazer com o silêncio do outro. Nunca o aprendemos. Não nos servirão os quilos de livros que estudei ou o catálogo dos filmes que já viste. Pois parece que para este ofício não há diplomas nem livros de instruções.
Estamos lixados.
Porque são nessas pausas em que a presença do passado se torna intragável. Cada gesto, cada movimento discreto, cada tic, tudo se junta num coro celeste que tem como missão lembrar-nos que nós já não somos risadas cúmplices debaixo do lençol. Agora somos silêncio. E continuamos (e continuaremos?) lutando para não admiti-lo.

12 julio 2009

Não és tu, mas a ideia que criei de ti. São as memórias que cozinhei longamente no meu caldeirão de momentos fingidos, que encenei e estreei naquele palco que, de tanto sonhar, tornou-se parte de mim.
Não és tu, são os filmes que vejo e a poesia que imagino ler. É este mundo em que para cada amor há uma esquina, para cada casal, um anel perfeito, para cada dois, um só coração.
Não és tu, é a minha a minha fúria contra o mundo quando descubro que ele não obedeceu às minhas ordens. Incompetente! Que os pincéis que lhe comprei não pintaram o quatro encomendado. Que não existem pincéis.
Não és tu, são os clichés impossíveis de evitar.
Não és tu, sou eu.

08 julio 2009

A professora de matemática

Não sei o que te devo, nem como actuar. Não conheço as ruas que piso, os instintos que me assaltam, essa desgraçada mania do mundo de acabar sempre, e mais uma vez, em ti.
Sinto-me uma mafiosa de cabelo despenteado e de roupa imprópria para a ocasião. Vim de chinelos ao casamento do rei e saí com os dedos do pé a sangrar de pisadelas de salto de agulha.
Esqueci-me do escudo e a bala atingiu-me fundo. Doeu.
Agora, derrubada neste chão pestilento, busco uma explicação e concluo que não sei distinguir entre o que sou e o que me ensinaste a ser, entre o que aprendi nos meus tratamentos de prevenção cardíaca e as drogas que me injectaste directamente na aorta. Desculpa, mas não consigo passar factura. É que, como já sabes, a professora de matemática metia-me medo.

30 junio 2009

Outro dia normal

O meu calendário tem buracos e desenhos. Os seus números ganham nomes e os dias um karma que tarda em perder-se. A minha vida anda em contrarrelógio de metas pequeninas, aos tropeções de semana a semana, de festa em festa, saltando, com pernas compridas, os dias normais que rasgamos na agenda.
Mas o meu calendário, de um momento para outro, perdeu um dia do mês. O que decidi abdicar, tempos atrás, naquele fim-de-semana cansado de dores musculares. Num ápice, esse número despiu-se do seu traje de festa, perdeu os corações que o rodeavam, os postais improvisados e os presentes às escondidas. Juntou-se, choramingando, à normalidade dos dias passageiros que à noite dormem abraçados com mais um risco do calendário.
Hoje quando acordei limpei as lágrimas ao dia trinta e disse-lhe baixinho: “Bem-vindo a mais um dia normal”.

28 junio 2009

Pés queimados de desejo

Era uma competição de carrinhos de supermercado, uma tarde de madeira junto ao mar. A cidade estava de férias e as sardinhas tinham sofrido uma repentina chacina. O mar mais vazio e o estômago mais cheio, diriam os radicais.
A mesa de jantar do senhorio que nos maltratou, a cadeira roubada do liceu enquanto a menina bonita distraía o segurança. O plano perfeito para aniquilar aquela estante lá de casa que a bisavó deixou-nos no testamento. Tudo teria finalmente um objectivo nobre: aquecer os corpos ébrios de estudantes festeiros, trabalhadores ressacados e desocupados em busca de evasão.
Ajudaram a queimar os pés de desejos e a iluminar os brindes a um futuro melhor. Testemunharam as juras de amor eterno e os arrependimentos de dia seguinte. As zangas sem sentido e aquela paixão encontrada numa noite sem dormir. Com as horas, o fogo transformou-se me fumo, esse perfume que tatua os corpos na famosa noite de San Juan.

17 junio 2009

Manjerico

Foi uma noite de danças pelas calçadas escorregadias, de gritos encostados a paredes molhadas, de abraços e apertos que não queriam mais largar.
Foi-se um manjerico e veio outro ao som da música com cheiro a sardinha assada. Aquela que se canta bem alto, com um copo cheio a transbordar para as mãos. Tropeçávamos, sem querer, em pés conhecidos. Um abraço, uma jura de amor eterna, um adeus de data indefinida. E íamos caminhando, como quem vai pela vida sem destino, à procura de mais rostos, de mais histerismo, de mais conversas confessadas num degrau de uma escada qualquer.
Por momentos o mundo parecia uma dança de multidões. Tão barulhento, tão confuso, tão dramático…
E os gritos e as lágrimas, os empurrões e os insultos, as promessas e os segredos, ficaram escritos naquelas esquinas embriagadas, naqueles olhares perdidos pelas ruas sem nome da nossa cidade. E serão esquecidos até ao dia em que, entre dois copos ou três mais, alguém relembre aquele dia em que…
O dia em que, diz a lenda, se celebra a melhor noite do ano.
O dia em que, mais uma vez, a profecia voltou a cumprir-se. Mas desta vez, sem casamentos.

15 junio 2009

Cara de póquer

Tu mentes-me e eu finjo acreditar nesta teia de pensamentos inventados que fomos construindo. Passeamos por ela, quais aranhas coxas de uma pata, e fazemo-la nosso reino. Somos assim, mentirosos compulsivos.
E não vale negar que é mentira sempre que dizemos que o sol brilha outra vez. Tripla negativa.
Não vale fingir que é verdade que já estamos em outra, que o resto é passado, que somos mais, melhores e independentes.
Não vale porque eu há muito tempo descodifiquei a tua cara de póquer. E o meu nariz, esse imbecil, acaba sempre por denunciar os meus pinóquios.
E a corda vai ficando cada vez mais grossa, mais resistente, mais estável. Até chegar ao dia em que deixemos de reparar que vivemos neste palácio de teias de aranha.
A tripla negativa torna-se verdade, e nós, uma mentira.

08 junio 2009

O balão e a criança

Quero fazer-te uma rasteira e rir-me de ti quando caias ao chão. Quero mostrar-te a língua e cuspir-te bolhas de saliva. Que vontade de puxar-te os cabelos e mandar-te migalhas de pão à cabeça.
Não quero mais ser prudente, nem razoável. O meu corpo está inchado de tanto engolir os insultos que ensaiei na minha cabeça. E assim ando pelo mundo, deformada como um balão amargurado que voou da mão de uma criança.
Então hoje decidi que não quero mais ser balão. Por um dia, pelo menos por um dia, serei eu a criança.

23 mayo 2009

eumaistu

Nós somos aquilo que fomos enquanto soubemos ser. E agora não somos, porque já não somamos nos números da calculadora.
Lembro-me de quando éramos. eumaistu. Agora transformámo-nos em eu e tu, o que quer dizer, em resumo, que já não formamos palavra.
Não existimos nesta Associacição de Seres Plurais que parece dominar o mundo. Nem eu, nem tu. Porque ali só entram nós.
E cada vez que nos vejo, eu e tu, em escritas separadas e conceitos distantes, surpreendo-me.
Porque a minha cabeça ainda não aprendeu a deixar de pensar no plural.

20 mayo 2009

Os astros e o caminho

Quero tecer palavras de algodão que te aconcheguem àquelas horas estranhas em que decides descansar.
Quero embrulhar-te num pacote cheio de fita-cola para que não te rasgues e depois envolver-te num impermeável, com um pouco de laca por cima. Melhor não arriscar.
Vou aparecer ai, de pontinhas dos pés, e ajeitar o teu cabelo de cogumelo e endireitar aquele caracol rebelde que insiste em desalinhar-se e esticar-te o lençol e dar-te todas as respostas àquelas perguntas que nunca tiveste coragem de fazer.
E, nessa noite, vou contar-te o que comi ao almoço, o que o professor respondeu à pergunta e falar-te da manchete de um jornal local. Vou rir-me da tua cara amassada e zangar-me porque estás sempre a ver filmes e nunca a filmar. Vou mostrar-te a verruga nova que me apareceu e queixar-me das enxaquecas.
E depois de tudo isso, já que estou ai, aproveito para me deitar um pouco e deixar-me embalar pela serena harmonia de outrora. Aquele tempo em que os astros se alinharam para mostrar-nos o caminho.
Prometo não acordar-te, nem queixar-me da tua apneia. Prometo usar sapatos de lã e banhar-me com as minhas próprias lágrimas. Prometo ficar ali até ao dia em que, finalmente, voltes a acordar a sorrir. Como naqueles dias. Os dias em que os astros…

14 mayo 2009

Soldado

Sou como aquele soldado húngaro que se gabava dos seus uniformes e dos hinos harmoniosos, dos sapatos engraxados, do batalhão organizado e das armas detalhadamente polidas. Até ao dia em que chegou a guerra e ele descobriu que nunca tinha aprendido a lutar.

07 mayo 2009

A otra cosa mariposa

Sai vício, sai.
Já te pedi de todas as maneiras que sabia, já chorei lágrimas de mendigagem, já implorei, já cedi e já te desprezei.
Por que é que então não abandonas, de uma vez, este corpo de que te fizeste escravo? Porque não migras para um novo paradeiro e conquistas outro coração vulnerável.
Preciso fechar-me numa casa, acorrentar-me à minha cama e sofrer, dor a dor, todas as torturas desta desintoxicação.
Sai vício, sai.
Leva contigo a tua voz aconchegante, as horas de conversas-gargalhadas tidas em sussurro num ouvido qualquer. Vai-te embora e arrasta os flashs de memória, o sorriso de cada pensamento teu, a perfeição daquele dia passado, preguiçosamente, à beira-mar.
Sai, imploro-te, sai.
Inscreve-te numa maratona e foge.
Mas mais rápido. Por favor.

06 mayo 2009

O eterno escavar

De repente toda a sua vida transformou-se num eterno escavar na areia. Um buraco mais e mais profundo que o asfixiava gradualmente. Uma cova sem fim, que a cada movimento o soterrava um grão mais e o aproximava da fatalidade que vinha omitindo há tanto tempo. Ao dar-se conta, as palavras morderam-lhe os lábios, as lágrimas e os soluços escaparam dissonantes em resposta. Saiu como um louco daquele buraco e instalou-se num cubículo qualquer.
Ali a vida era mais segura. Ali, podia menosprezar os penosos degraus da escadaria da aprendizagem e as regras mais elementares de uma grandiosidade futura. Ali podia passar os dias entre lágrimas e pensamentos. E se falhasse, não teria grande relevância porque, pelo menos, não tinha sequer tentado.

05 mayo 2009

A viagem.

Enquanto a vida passa à velocidade de um cronómetro de segundos apressados, eu vou fazendo notas mentais para não me esquecer daquele olhar, do comentário mal conseguido, da história da amiga do vizinho que tem um gato novo. Os meus apontamentos vão acumulando-se em resmas de folhas coloridas que me pesam na cabeça. Mas não importa, há que anotar tudo para não esquecer nada. Anotar tudo, para poder contar depois.
Depois como daquelas vezes em que ias de viagem ou passavas a noite em casa de um amigo. Depois como um “já te ligo daqui a bocado”.
Depois como se houvesse realmente um depois.
Mas parece que depois do depois não há nada.
É um silêncio total, cuja banda sonora são os clicks desesperados nos ícones sociais que outrora me conectaram a ti. Um pequeno suspiro à espera do dia em que me deixem, finalmente, dizer: “Que tal essa viagem? Conta-me tudo.”

30 abril 2009

Caroços de tangerina

Acreditava que seria uma espiral perfeita, eterna, colorida e brilhante, como as tardes de domingo a jogar Sonic na Sega Saturn. Que aquele cheirinho cítrico de fruta descascada iria continuar impregnado na nossa pele, recém queimada de sol. Via-nos numa fotografia congelada de sorrisos extravagantes, num passado que nunca chegaria ao futuro banal de passividade amorfa.
Mas foram comendo as nossas costuras e, aos poucos, deixámos de ser capazes de remendar-nos. Andávamos rotos pelas ruas sinuosas de um país estrangeiro, em que naquela imagem, reflectida nos vidros das lojas de marca, não éramos nós que aparecíamos. O meu nariz já não cheirava os caroços de tangerina engolidos ao acaso, nem aquele perfume que um dia deixaste no lençol.
Nós éramos eu e tu. E isso já não me servia.
Neguei 29 vezes e à trigésima disse: chega.
Agora chegou e chegámos nós aqui. Sem saber muito bem se preferimos o 29 ou o 31.

23 abril 2009

All-star

Não quis olhar. Congelei-te numa imagem e fechei os olhos. A luz doía muito e mostrava um filme serie B que falava de um homem que se queria compor, que lutava por encontrar o tom certo, a nota perfeita, afinada, ritmada a uma melodia pré estabelecida. Guião medíocre. Apertei mais os olhos e respirei.
Aqueles não éramos nós. E os nossos ouvidos sangravam de ferida aberta com remédio errado. A voz tremia a cada piada mal conseguida, a cada palavra engolida com miolo de pão.
Tu és aquele all-star roto com o dedo de fora. És o sapato que se sabe lixo e mesmo assim, heróico, resiste até ao fim da viagem. Sem descompor-se, sem nunca desmaterializar.
E eu sou só um acompanhante desse all-star de caveira desbotada. Sigo, cega, os seus passos. Porque há que protege-lo. Custe o que custar.

a coleira

Penso naqueles dias em que a vida era um constante count-down de sacos de goma e museus de ciência. Olho à minha volta e estremeço com os sorrisos derretidos de felicidade, com os lugares comuns de satisfação, com os meus pés, sozinhos, metidos debaixo da areia.
Agora tudo o que eu queria era sair, libertar-me destas amarras de material indestrutível. Construir um novo eu, um que soubesse voar longe e regressar com as suas conquistas. Quero ser pássaro predador, mas há algo que me prende à terra, uma coleira incómoda que amarra as minhas asas e diz-me baixinho que a liberdade é sofrimento.

20 abril 2009

Liliputiense

Sou uma formiga na fila para conseguir um grão de açúcar. Um pontinho negro em busca de uma cor complementar.
Sou formiga preta e medrosa, sempre expectante de quando chegará a dita pisadela. Quando esmagar-me-ão com uma sola de sapato lamacenta ou um salto agulha de uma tia afectada qualquer?
E do pisão ao espatifamento total, um segundo. Assim, puff.
Tudo porque hoje apresentei-me à minha essência numa entrada de dicionário. Respirei fundo e pensei: “Até é uma palavra engraçada. Parece-se com uma formiga”

18 abril 2009

Estás sozinha. Mergulhada em ti mesma num mundo egoísta no qual nunca aprendeste a viver. O teu umbigo cresceu, a tua cara mudou e a tua roupa ganhou todo um novo significado. És tu jogada aos leões. Tu sem carro de apoio, lançada a um cenário agreste que faz bolhas nos pés e lesões no joelho.
Meio a coxear, apercebeste-te da dimensão da tua nova existência. Cambaleias, duvidas, dás um passo de segurança para trás. Porque te crês sempre tão corajosa?

16 abril 2009

O tombo

Ela caiu e enquanto tombava via a sua queda em câmara lenta. Tropeçando, pouco a pouco, nas pedras do caminho, ferindo os pés e inclinando-se para a frente, para trás. Resistindo. Mas era inevitável. As forças da gravidade sempre venciam.
Primeiro um pé, depois o outro, uma aterrizagem brilhante, daquelas que fazem pouco barulho e quase não levantam poeira.
De repente, tudo mudou.
Depois de meses a ensaiar aquela queda, apercebeu-se que a genialidade da técnica de pouco lhe valia, pois estava ali, no chão, caída.
Ao nível da baba do cão, da formiga venenosa e da lesta gorda.
O mundo parecia tão grande visto desde baixo.
Grande e assustador.
Foi nesse momento que arriscou e pediu: “Gravidade, dás-me mais uma chance?”

31 marzo 2009

Palavras de silêncio

Escrevi no silêncio o que não tive coragem de falar.
Tu leste-o e agora perguntas-me,
“O que isso quer dizer?”
Eu respondo-te que o que foi emudecido por aí seguirá.
Argumentas então que sem som não há palavras.
E eu grito-te:
“Shhhiiuuu”.

26 marzo 2009

Preciso de uma chave.
A que engolimos naquele dia de verão.
No dia em que caminhávamos com as costas pesadas, o cabelo oleoso e as unhas dos pés sujas. O dia em que não paravas de falar. Em que me contavas histórias de fazer rir e aquelas que me levavam a viajar por sonhos distantes de mãos dadas e pés entrelaçados por baixo da areia de praia. Glup.
O cadeado é um labirinto sem fim. Em que a cada passo há um abismo, a cada obstáculo, um suspiro.
E de pensar que eu já tive essa chave. Era só ter feito click.

25 marzo 2009

O baralho de cartas

Éramos muitos. Falávamos como se fossemos o mesmo, numa complementaridade de defeitos que culminava em caretas de aborrecimento. No fundo, éramos um. E isso incomodava-nos.
No ar sentia-se uma aura de plenitude que se exaltava pelo meio dos dedos entrelaçados, dos olhares cúmplices, da cabeça que, lentamente, se inclinava sobre um ombro mais distraído.
Passeávamos por conversas esquecidas na gaveta, opiniões contraditórias de berros e insultos e carinhos de vermelho corado.
Fingíamo-nos frios, distantes. Intelectuais urbanos com sede de informação. Éramos pequenos, frágeis e estávamos a jogar os quartos de final das partidas de cartas que nos habituámos a começar sempre que uma noite corria mal. Agora tudo estava entrilhado. E, como o previsto, as cartas chegavam quase ao fim.
Mas com o baralho, nunca se sabe.

17 marzo 2009

Fechei os olhos e, sem querer, senti-me mais perto de mim.
Sou o fruto cansaço e das conversas de olhares roubados.
Sou aquilo que me mandam ser, empacotada em vinte quilos de bagagem sem liquidos.
Mas agora, pensando bem, apeteceu-me voltar atrás. Cerrar devagarinho as pestanas para todas que encaixem bem e não embaciem a paisagem.
Sou aquela que vejo de olhos espectantes perdida na escuridão.

08 marzo 2009

Cera de ouvido

Quis falar e não encontrei ouvidos. Quis dizer, mas calei. Quis fazer e desfiz.
Porque tive medo de errar. Outra vez.
Estava de língua grande, cabeça cheia e voz solta. Prendi-a.
Ficou a espreitar do muro, assustadiça, à espera da hora certa. Não chegou.
Tentei fazer o pino, virar o mundo ao contrário. Pôr uma cabeleira colorida e um chapéu pontiagudo. Não funcionou.
Vi um drama pouco dramático e li um livro pouco descritivo. Busquei inspiração em letras coloridas. Não chegou.
Decididamente, hoje o dia não está para mim: os ouvidos têm todos demasiada cera.

07 marzo 2009

Desfazer-me de mim

Sinto o peso do mundo nas costas, no pescoço e a fazer pressão na parte de trás da minha cabeça. Sinto-me pesada.
Vejo os meus passos cada vez mais lentos, arrastados, em busca de um banco para se sentarem. Resisto. E cada palavra, uma pequena faca sangrenta, uma gota menos nos litros que sangue que não me deixam doar. Preciso desfazer-me de mim. Comprar um outro eu em segunda mão. Um eu que tenha menos defeitos, menos calos da vida, cores mais brilhantes e certezas. Acima de tudo, certezas.
Vou à feira da ladra e, em desepero, procuro-me. Entre camisas velhas, roupa suja e vídeos usados. Eu estarei por ali, algures. É só procurar. Acabo por comprar um livro. Para não admitir o fracasso. E, de mansinho, desisto.
Queria ser forte e musculada, mas fizeram-me débil, de saúde instável e cabeça pensativa. Daquelas que não se calam. Chega o dia em que não aguento mais engolir. Esforço-me, mas e o meu corpo regurgita.
“Não devias ter dito isso”, respondem-me. E eu engulo-o. Outra vez. Mais uma vez.
Então hoje resolvi voltar à feira da ladra.
Quem sabe tenha mais sorte.

06 marzo 2009

A Mosca

Quero ter visão estroboscópica. Que a minha fonte de luz se interrompa e eu vá formando o movimento a preto e branco. Aos poucos. Ao meu tempo.
Quero poder dizer que ninguém nunca me vai apanhar. Quero saber fugir, contornar, antecipar. Vou voar e arriscar-me. Sem medo.
Serei mais um anfíbio. Eu sei. Mas com uma encantadora vida pela frente.
Serei poderosa, temida. Se pousar na comida, infecto-a, se adoentar-me propago.
Poderei dizer que fui alguém, que mereci viver, que ajudei a sociedade, que curei a gangrena.
Gostarei de carne morta, já o sei, mas não esconderei essa predilecção. Comerei os defuntos. Como os bichinhos. Serei usada na pesca e na medicina. Tornar-me-ei famosa e ganharei prémios.
E quando me tentarem apanhar, não poderão. Serei mais rápida e jogarei com uma vantagem: terei, finalmente, uma visão de 360º. Tu, comum mortal, só terás 50.
Passado um mês estarei cansada e, heroicamente, deixar-me-ei apanhar, apenas como um acto de compaixão. Para dar alegria àqueles que não conhecem a glorias. Escrever-se-ão livros sobre mim. E as crianças pedirão uma visão estroboscópica para o Natal.

03 marzo 2009

Casa de florista

Saímos de carro azul e tanque cheio, o jantar num saco e um mundo de CDs.
As histórias vinham com dores nos pés, redacções stressadas, entrevistas de rua. Tinham cor de semana de sol e um sorriso impossível de costurar.
As horas passaram animadas e acabaram com um passeio nocturno à beira mar. Eu tinha, finalmente, chegado.
Por ali ainda havia aquele perfume de casa de florista, aquela luz rosada com ar de cinema europeu. Por ali eu continuava a ser aquela menina mimada que fui um dia, aquela amiga sem preocupações, aquela risada mais alta que aguenta a noite toda sem cansar. E eu assim fui. Só para não desiludir.
Esperavam-me confissões, amigos e histórias não contadas. Noites de abraços apertados, de olhares de cumplicidade, de comentários que só a língua mãe pode entender.
E, de repente, já tinha acabado. O carro azul conduzia-nos mais uma vez por estradas bilingues. Na cabeça navegavam conversas de palavras não ditas e outras em que se falou demais, corriam memórias fotográficas daquele olhar, aquela palavra. Por momentos hesitei.
Mas agora olho pela janela e vejo o carro azul parado em frente à casa. Percebo, então, que aí é o seu lugar. Á espera de novas viagens.

19 febrero 2009

Folhas brancas

Tenho o sapato gasto e o gravador sem pilhas. O caderno acabou e a caneta ficou sem tinta. Tenho o bolso vazio, a cabeça com histórias e as pálpebras a fechar. Dói-me o cansaço, os sonhos e o futuro de folhas brancas por escrever.
Quero ser assim. Como eles.
Levar a vida de horas desconexas, falar do ministro como o gato de estimação, entender os problemas do senhor analfabeto e explica-los ao senhor presidente.
Sair e respirar noticias.
Quero falar, conhecer e descobrir. Quero fechar os olhos e escutar teclas, teclas atrás de teclas, numa música apresada de ritmo desfasado. Quero crescer e não me preocupar mais com a ecologia. Mergulhar-me em papéis. Pilhas de papel não reciclado com notinhas em gatafunho de caneta bic azul.
Quero comprar mensalmente packs de canetas bic.
E depois dizem que a paixão não serve. Nem a força de vontade. Falam da crise, da crise e da crise. Fazem delete em todas as linhas que já tinha começado a escrever nas folhas brancas do meu futuro. Enquanto isso vou comprando sapatos. Para quando chegar o momento em que gastar as solas vire uma rotina.

06 febrero 2009

"Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas a s cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz – eu, Abraão ben Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé – e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu."

Nuno Júdice

25 enero 2009

Caos Orquestrado

Ele tem aquele jeito esquisito de acordar. Meio despenteado, meio de mau humor matinal. Olha-me com aquela cara de vincos de quem quer ficar o dia todo a preguiçar. Confortável.
Ele tem a habilidade de não fazer nada o dia todo e mesmo assim manter-se ocupado. Ele é tão desarrumado e arruma tão bem. Um paradoxo, diria.
Falta-lhe sempre uma peça de roupa no armário, um instrumento musical e dinheiro na conta bancária. Eu faço-lhe listas para ajuda-lo a gerir-se melhor. Mas ele nunca as cumpre.
Para ele as coisas são para sempre. É um eterno romântico, mas nunca o admitirá.
É aventureiro e medroso. Proactivo e propassivo. Estou sempre a dizer-lhe para canalizar melhor as suas qualidades. Ele não me faz caso. Faz parte da sua complexidade, gosto de pensar. Um caos orquestrado, corrigiria ele.
Tem problemas e nunca soluções. Tem ideias e nunca projectos, inícios e nunca finais.
É daquelas pessoas que aparece um dia à porta de tua casa e diz: faz as malas, vamos viajar. Eu fico nervosa, pego num mapa, anoto o caminho, faço três ou quatro telefonemas importantes. Ele pega em tudo e manda pela janela.
Agora estamos separados. E isso custa.
Mas o maldito tem uma impressionante capacidade de, apesar da distância, conseguir manter a minha vida um pouco mais desorganizada. E eu? Tento ordenar-lhe os dias telefonicamente. Nunca com muito sucesso, admito.

22 enero 2009

E depois lembro-me daquele dia em que fomos saltimbancos ciganos. Da areia da praia que se metia entre os dedos dos pés. Do acordar cedo e ficar a preguiçar. Juntos.
Lembro-me dos programas de domingo que nunca se repetiam, do pequeno-almoço das sete da manhã. Da palavra não dita numa noite de presentes.
Houve os jantares de cartão de crédito e aqueles que nunca chegámos a jantar. Os de comida descongelada e pão do supermercado.
Aquela gargalhada que te fez orgulhoso e o primeiro dia em que ajeitaste o meu cabelo. De quando saímos e não lembramos de ter voltado. Das vezes em que achámos melhor não sair.
E é então que me lembro de ontem. O dia em que deste tanto e eu tão pouco. Em que olhaste-me e eu fiz questão de desviar-te.
O dia em que me percebeste. E não deixaste de sorrir.
Apesar de tudo.

21 enero 2009

A primeira página

Tocaram o sino como na época da escola. Como aquela octogenária doente no terceiro andar da sua mansão. Acudia-lhe uma empregada fardada, de sapatilhas antiderrapantes e uma bandeja de prata.
Mas este sino era diferente. Dele não vinham alunos suados, nem amas do lar alinhadas ou sequer um padre para começar a missa. Vinham pessoas normais, daqueles ídolos estranhos que fomos aprendendo a criar. Iam enchendo e esvaziando aquela sala de veludo verde. Do seu discurso, só um comentário: compro.
E assim se negociavam palavras, linhas e até vírgulas.
Compro.
E daquelas compras saíam vendedores satisfeitos, compradores que se sentiam burlados. Saíam homens a correr, outros em passo lento, indiferente. No ar pairava uma angústia corriqueira, daquela que dorme por baixo da almofada. Os minutos corriam em contra-relógio e quando contavam os 54, fim.
Desta vez sem sinos, nem despedidas. A sala esvaziou. Ficou apenas o silêncio e o veludo verde que adornava aquela primeira página.
A que um dia fará história.

19 enero 2009

Algodão doce embrulhado

Tinha-o imaginado um sem número de vezes na minha cabeça. Era aquele discurso do sempre, da força, do desculpa e do eu também. Vinha embrulhado em papel de presente brilhante. Daqueles vermelhos com bolinhas brancas. Tinha um laço discreto e abria-se com facilidade. Lá de dentro saíam palavras com sabor a algodão doce. Mas não dos cor-de-rosa. Dos azuis, os mais raros. Palavras que se podiam comer ou só ficar ali, a contempla-las, enquanto se enrolavam à volta do palitinho.
E no fim deixavam aquele saber gostoso na boca. O sabor do quero mais, do pagava o que fosse para ter essa maquina em minha casa, do venda-ma por favor, imploro.
E então atende o telefone:
- Olá, desculpa, é que ‘tou ocupado.
- Ah, não faz mal, não era nada de importante, já falamos.
Era só uma história de palavras embrulhadas em papel brilhante. Coisas de crianças que ainda sonham com algodão doce. E ainda por cima dos azuis.

18 enero 2009

Desconectar

Hoje quero sair, desconectar, deixar para trás esta vida de dependências. Quero correr pelo mundo de mochila às costas, alimentar-me de gomas e batatas fritas. Chega de encenar este filme de bonzinhos e vilões, em que ganham os solidários de sorriso forçado e trabalho árduo.
De repente, toda a existência torna-se um ponto de interrogação contínuo e derrete pelo corpo, alimentando a terra.
Sinto-me tonta, crédula, daquelas espécies que o mundo moderno já anulou. Sinto-me usada, violada, uma rainha nua que durante muito tempo desfilou pela cidade. Até que chegou o dia em que descobriu a sua nudez. Nunca mais pôde sair de casa, nem olhar o seu povo de cabeça erguida. Desconectou.

17 enero 2009

Sem hipoteca

Ele queria matar os andaluzes e atirar os ingleses ao mar. Mas era pacífico, assegurava. Falava-nos com frases erráticas e desinteressadas, daquelas que o professor recomendou nas entrevistas. Pena não terem sentido.
Eu notava como lhe caíam bem as luzes azuis daquele bar de música americana. Ele, na sua solidão, sentado de copo cheio, à espera de uma presa. E nós, sem querer, comemos o isco.
Formou-se artista de trajes estranhos. Palhaço, imaginei. Mas acabou ganhando a vida servindo bebidas num bar. Pelo menos não a perdeu numa hipoteca, comentou. Era calvo, daqueles que mais preferiam ser carecas. Balançava a cabeça, freneticamente, enquanto dissertava sobre os urinóis. E sobre o amor. A noite ia avançando e aquela veia da loucura que tinha saliente na testa aumentava com olhos cada vez mais esbugalhados. Em certas circunstancias, tive medo que explodisse.
E vieram mais frases nunca acabadas, ideias que não era capaz de concluir. Outra vez os urinóis, outra vez a vida de sexo ocasional e sexo indefinido.
Pagou-nos duas cervejas para nos compensar o tempo desperdiçado.
Era mais um filho da cocaína.
Mas este, pelo menos, não tem a casa hipotecada, pensei.

14 enero 2009

Entre o salgado e o inexistente

Um momento congelado. Ele olha-me de olhos inexistentes, daqueles que só ele sabe fazer. Os meus estão salgados, mas isso nem é preciso mencionar.
Eu não queria ter dito aquilo e nem sei porque tudo começou.
Não, isso não é verdade. Eu lembro-me bem do princípio desta história.
Aconteceu no dia em que ele tinha olhos grandes e os meus estavam, surpreendentemente, salgados. Os dele olhavam envergonhados para baixo, e os meus para cima, num piscar superior de quem quer fotografar o momento.
O chão estava frio e a noite cheirava-me a cerveja derramada, camisa azul clara e suor nervoso.
Algo foi dito e, de repente, os seus olhos mudaram. Foi-se-lhe a expressão e aquele brilho lubrificado que nutria os escassos centímetros que lhe separam a as pálpebras dos cílios. Por momentos, juro que nevou. E então os meus olhos, mal-educados, deixaram de saber para onde olhar e escorregaram para baixo.
Foi nesta dança de olhos vagabundos que se fez um olhar. Aquele a que nos fomos habituando a ter.
E agora estamos aqui, entre o salgado e o inexistente, tentando olhar-nos outra vez.
E sei que a culpa toda foi daquele dia.
O dia em que olhar pareceu tão fácil.

01 enero 2009

Aquele ano

Foi um ano. Um ano em que todas as coisas planeadas antecipadamente saíram à sua própria maneira. Um ano em que de Janeiro a Agosto foi Verão. Um Verão molhado de lágrimas à distancia, de inutilidade perdida, de trabalho não recompensado.
Foi um ano de tristeza atenta e de êxtase europeu. De seleccionar para melhorar. Um ano de escolhas e de metas. Desta vez todas cumpridas.
Foi um ano que começou num sotaque e acabou em língua estrangeira. Em que se seguiu à risca as regras da vida de uma cidadã expatriada que foge em busca de soluções.
Um ano sem raízes, como me ensinaram a ser.
Foi o ano em que fizemos um ano.
Um ano de desgaste e escapadelas. De saídas, jantares e viagens. Foi um ano em que se duvidou mais do que nunca e, nos momentos certos, a certeza chegou.
Foi um ano em que o cinzento e o roxo estiveram na moda. Em que ir ao cinema ficou fora dos limites do orçamento, mas se descobriu a magia dos downloads ilegais.
Foi mais um ano em que durante as doze baladas ardia-me o escaldão, a sandália alta doía-me no pé e o ouvido latejava com as explosões de cor no céu. E na última badalada um grito histérico de felicidade, enquanto uma lágrima caía de um flash back de mais um ano.
“É emoção”. Daquele ano que já passou.