26 febrero 2010

É azul, digo

Olho para o azul e pergunto: Como sei que não vês amarelo? Sei lá, verde, roxo, castanho. Fixo-me bem fundo nos teus olhos. Penetro na retina e procuro respostas. Isto é azul!, digo-te, a-zu-l. E tu respondes que sim, que claro que sim, que aprendeste isso na escola. Mas não consigo evitar este sentimento misturado que me garante que sempre que falamos de azul estamos, no fundo, a viajar num degradé de tons cianos, numa escala indefinida de nomes e conceitos abstractos. Afinal, quem tem a paleta definitiva das cores? Quem é o Deus, grande mestre, das misturas coloríficas?
E de perguntona perdi-me pelo mundo dos tons, misturei-os todos e, estranhamente, deram preto. A professora tinha me dito que o branco era a resposta. Mas nunca o comprovei. Teorias.
E agora estou aqui, nesta vida de tons pastel onde o azul é só um conceito distante que gosto de defender como meu.
É azul!, digo, a-zu-l. E tu respondes que sim, que claro que sim, que aprendeste isso na escola.

22 febrero 2010

Com palitos nos olhos

E, quando parece que a vida se está a encaminhar outra vez, tremo. Tremo e temo por aquilo que posso não vir a ser. Pelos sonhos a cair do penhasco, a escorregar, ribeira abaixo, encharcados de frustração molhadas. Assusto-me com um futuro negro, sombrio, insatisfeito e acomodado. Arisco-me e duvido as decisões que tomei. Repergunto os sins e nãos que deveria ter gritado.
Mas, naquele futuro distante, já não há meia volta volver, pára o disco e toca outro. Vejo-me atrapada nos impulsos de uma jovem ambiciosa, afogada num mar de sonhos não concretizados, numa “vocação” inventada em noites de luar na fogueira de uma praia qualquer.
E depois paro, levanto-me, acordo desta espiral negra que me põe palitos nos olhos durante as profundezas da madrugada, respiro fundo e penso: foi só um pesadelo. Mais um pesadelo.

09 febrero 2010

Uh lá lá, minhôcá

Dizem-me que minhoca não tem movimento.
- Como não? – pergunta a centopeia que puxa, estica e vai andando, por ai, correndo, verde, pela vida.
Revolução! Juntemos pessoas apressadas, o rapper da esquina e o um ou dois megafones. Façamos uma sessão fotográfica. Clic, clic. E la vai ela, a minhoca, esplendorosa, graciosa, desfilando pela passarela com o seu vestido esvoaçante. Uma ventoinha, uma ventania, um vulcão de vento, algo. Reprovado, que os franceses não atinam com o “vê”.
Então coloquemos a dita graciosa num carrossel, numa montanha russa talvez. As palavras compostas estão na moda. Que faça uma corrida, que se junte a uma marcha, que dê um salto duplo numa piscina de ondas. Coitada, que se afoga, que as minhocas que não sabem nadar. Então façamos-lhe um rio, um lago. Sim, um verme a chapinhar numa poça. Mas de tanta agitação ficou tonta, zonza, com o mundo às voltas como se estivesse a centrifugar. Pula, estreita, treme e foca-te. Centra-te para que te passe o reboliço. Rébôlissô, diriam os galgos.
Mas se por fim os tremeliques não funcionarem, levemos a esplendorosa de viagem. Um jacto, um furação, uma expedição em anos luz. Ali poderá experimentar o calafrio de uma nova cultura, a brisa de cheiros extravagantes, o pingar arrítmico que só conseguem as gotas dos países estrangeiros. Façamo-la suar, jogar com o ping-pong da vida. Pronto, está bem, que se apaixone, que isso também é movidito. Que lhe rompam e estilhacem o coração em mil partes. Porque os amores de viagens são assim, imprevisíveis, a minhoca também deveria viver-lo. Abandonada, exausta, com o pé a arder e o coração a coçar, a estrambólica regressa a casa. Desta vez para descansar. Chega de movimento por hoje.

08 febrero 2010

O apelo

As minhocas têm nove corações, um para cada dor. O primeiro sofre baixinho, para dentro, com um grunhido interior que cala o som, abafa a voz, põe fita-cola nessa boca tagarela. O segundo é o que ama. O que voa com o silvar do vento, com a banda sonora do primeiro encontro, mas sabe, porque no fundo todos sabemos, que como diria Woody Allen “to love is to suffer, not to love is to suffer, to suffer is to suffer”, e então chora por antecedência o golpe futuro que terá o seu coração.
O terceiro é preguiçoso e sofre por inércia, o quarto deprime-se com a fome do mundo, as mutilações femininas e o tráfego de crianças. Que serio é esse coração. E então chega o quinto, esse histérico. É o que grita, esbofeteia, insulta e berra o mais alto que pode. Eu chamo-lhe coração-revolta, mas isso sou só eu. Ao seu lado está o seis, o cínico. O que põe um sorriso nos lábios engole o choro e segue em frente. O sete sofre por pensar demasiado e o oito sabe que, simplesmente, não pertence a este mundo.
Mas então chega o nono a passos lentos, arrastando os pés. Tem o cabelo despenteado e as olheiras roxas de sono. Ele é macro. Está apenas irritado, desiludido, farto de sofrer nos seus nove corações. Então pega num sapato e mata-se a si mesmo. A si e aos seus oito irmãos. !Suicida!, gritam os seus companheiros, enquanto o resto do reino animal aplaude.
Este é somente um apelo ao suicídio das minhocas. Pela morte limpa e digna. O próximo passo será o massacre.

07 febrero 2010

A morte matemática

Um mais um será sempre igual a dois. Um menos um, zero. De súbito acredito que a existência se resume à matemática. É feita de uma história que se foi. De uma história que nós fomos. De um passado com cheiro e gosto. De quando eu sofria por coisas alheias. De conversas debaixo do lençol. De chocolate com churros. Do sorriso de surpresa. Da coisa boa e da ruim. Dos momentos que imprimimos em fotografias retocadas. Do vazio. De um medo que se foi sem susto. Do que eu pensava que seria impossível. Das tardes sem pensar. De muito. Do demasiado elevado ao cubo. E de repente parece que alguém quer acabar com tudo isto. E de dois passamos a zero. Porque a morte é matemática. Mas a vida, não.

01 febrero 2010

Eles

Ela gosta dele porque diz que ele é bonzinho. Ele não diz, mas gosta dela porque sem ela a sua vida não teria graça nenhuma. Eles reclamam, implicam e reviram os olhos. Dão beijinhos, abraços e gargalhadas em uníssono. Ela gosta de ténis e ele de futebol, ele de ler e ela de ouvir. Qualquer um diria que se completam. Ignorantes. Eles são tudo menos um cliché.
Desde que os conheço, proclamam orgulhosos que no seu vocabulário não existe nem “tu”, nem “eu” e então lá tivemos todos de aprender a conjugar os verbos em “nós”.
- Duh, que bobagem! – diziam os adolescentes com sentido de ridículo.
Deve ser defeito meu, de memória selectiva, mas olhando para trás, só me lembro de terem discutido duas vezes. Em ambas as ocasiões chorei em silêncio. Chorei porque queria que vissem o mundo pelos meus olhos, que percebessem que o que conta piadas tem de acabar com a miudinha que se ri, que a carinhosa termina sempre com o armado em machão e que o que lê a secção de politica precisa de alguém que lhe conte sobre o apartado das fofocas. E o resto são peanuts.
Mas, fosse como fosse, sempre que o mundo dava cambalhotas ali ressurgiam eles (ou deveria dizer nós) naquela imagem imbatível de duas mãos dadas pela vida. Pela vida e por um telefonema de feliz Páscoa.
Porque eles são assim, eternos.
Cresci pensando que seria fácil imita-los, ser feliz. Aos poucos e largos sofrimentos descobri que não, que não era tão simples seguir a sua fórmula secreta de sucesso eterno. Que era preciso mais do que um conhecimento correcto da gramática para aprender a conjugar os verbos na primeira pessoa do plural. Mas que por uma ou outra misteriosa razão, eles tinham encontrado esse plus.

Tudo isso, ou talvez esta seja apenas a visão torcida de uma filha babada.