31 julio 2007

post-it

Sempre adorei papéis. Papéis, canetas, blocos, cadernos.
Quando era pequena fazia colecção de papéis de carta. E que bela colecção que eu tinha. Havia alguns que eram muito valiosos e ficavam a meio do dossier (para não se estragarem) e eu colocava-os numa mica especial (que ia substituindo de tempos a tempos. Papéis de carta valiosos não podem ficar expostos em micas riscadas).
Eram impagáveis os meus papéis de carta. E tanta inveja que as outras crianças tinham deles.
Eu gostava de os ver e cheirar (porque muitos deles tinham perfume) e, acima de tudo, de os exibir.
Mas mania dos papais de carta foi passando e fui começando a coleccionar outros tipos de papéis. Papéis secretos, não-exibíveis.
Eram cartas e recordações, eram bilhetes e histórias.
Antigamente tinha uma caixa. Era de madeira e tinha o meu nome gravado por cima. Comecei a guardar ali as minhas recordações papelísticas. Mas a caixa encheu rápido demais e pus-me a pensar: Talvez isso de guardar papéis numa caixa não seja boa ideia. A caixa era como uma recordação gigante e proibida. Uma recordação triste-alegre que trazia lágrimas e sorrisos, arrepios e suspiros. Continha palavras proibidas e segredos selados. Desenhos rabiscados e declarações apaixonadas. Um buraquinho intenso demais para um comum mortal. Resolvi abandonar o dito objecto numa gaveta e pus-lhe um aviso em cima com a frase “material potencialmente perigoso”.
Espalhei os meus segredos pela casa, pelas roupas, carteiras e malas. Para, quem sabe, serem encontrados um dia.
Guardei cada segredo num canto refundido, cada recordação num pedacinho de espaço invisível. Talvez um dia os volte a encontrar, ou talvez as recordações fiquem para sempre escondidas no labirinto dos segredos e das memórias. Não sei.
Tudo isto porque ontem ofereceram-me um post-it. E agora não sei onde o colocar. (ou esconder).

30 julio 2007

marginalmente romântica

Sou marginal. Marginal e vadia na rua das mentiras e dos enganos.
Tenho uma pele que arrepia e estremece a cada grão de areia que se cola. A praia tem pouca areia, é um facto. As famílias comem-na lambuzam-na, escorregam-na para o mar revolto. A onda vem e vai num ritmo congelante de circulação parada. E o sol frita.
Existem certos rituais que são imagem fotográfica. Croquetes de areia e mãos que abrem e fecham num deslumbre preocupante pela fisionomia humana.
Sou um cigano itinerante, um velho bigode alongado de saltos e nuvens de perfume. Perfumes nostálgicos e molhados. De línguas e lágrimas que escorregam em segredo pela pele queimada. Mas está frio. Muito frio. O ambiente começar a tornar-se inóspito. Quando o perfume se vai, qual nómada atrevido, vou-me com ele em viagens de violinos e acordeões. Há um fantasma que me segue. Um fantasma secreto que me faz cócegas pelo corpo quando passa por mim como uma brisa daquele mar remexido de sábado à tarde.
Às vezes o fantasma passa por mim, faz-me rir com caretas e histórias incontáveis. E eu penso: O romantismo já não está na moda.

25 julio 2007

Pudim

Estou a enterrar-me na areia movediça da ampulheta. Os grãos caem como pedras que ecoam na minha cabeça e cantam uma música de adeus.
Mas tenho a pele colada a este lugar. A estes cheiros a esta rotina de papel e suspiros.
Rezar para que o tempo passe depressa e rogar para que o tempo nunca passe. Deus fica confuso e resolve deixar-me abandonada na selva de leopardos vaidosos.
Não quero ir, não quero ficar.
Fui ao supermercado e comprei um saco cheio de pudins. Pus um pouco de ketchup por cima e comi. Comi até não poder mais.
Achei que talvez um bocado de conservante pudesse ajudar. Quem sabe.

23 julio 2007

músculos vadios

Os olhos insistem em fechar. O cérebro concentra-se neste movimento paralisado de cessar. Não posso piscar os olhos porque eles gritam de sono, também não posso pensar porque se pensar os olhos adormecem e sonham em cenários paradisíacos de sol e lua minguante.
O dia vai passando com horas contadas ao minuto e o fazer nada vai esmagando os momentos de alegria.
E o tempo não passa. Os músculos ardem e rasgam a pele. Músculos estranhos, estes. Não os conhecia mas não me parecem muito afáveis. Apresentam-se de rojão, sem sorrisos e sem formalidades. Gritam a sua presença e trazem cartazes de dias coloridos. O pescoço também dói da areia dura de cestas ao sol. São músculos nómadas e vadios que vêm e vão como as ondas de calor.
Mas agora a dor já não define o sentimento. São pontadas fortes de férias encantadas, são pensamentos magoados que desviam o humor.
Acho que preciso de uma massagem.

22 julio 2007

e

Às vezes as palavras não chegam.
Preciso de um dicionário, de um génio linguístico que se instale na minha cabeça e me que articule os maxilares em forma de palavra.
São momentos.
O abraço esmaga os ossos e repara-os num beijo apertado de respiração prolongada.
E o ar percorre o corpo num arrepio triplo de sussurros e toques. E os dedos entrelaçam-se numa dança clássica de valsa para crianças, que rodopia o ouvido, como cotonete molhado. E as memórias de adolescentes surgem com confissões e segredos embutidos em compartimentos reservados. E as reservas de energia revelam-se, com saltinhos sorridentes e espreguiçares matinais. E os sorrisos são abertos e têm som de felicidade extrema. E o limite da plenitude é ultrapassado e arrasa com as barreiras da racionalidade. E a razão desaparece, e com ela o mundo. E tudo à nossa volta se extingue.
Isto é como um jogo de ligações. As palavras trazem recordações a cada piscar de olhos e as imagens invadem a mente, num turbilhão frenético de gritos e suor. O suor escorre e molha o corpo como água derramada de perfume feminino. A água seca na toalha proibida de uma praia fictícia qualquer. As mentiras arrastam-se e criam cenários idílicos para onde nos transportamos com a facilidade de quem foge da dieta. As calorias comem as calças e transformam-se em monstros açucarados de ruminantes loucos.
Mas a pálpebra descola e a luz fere o olho. Preciso de um soporífero. Deixem-me voltar a sonhar.

20 julio 2007

coro de multidão

Zumbidos de sons luminosos.
O suor escorria ao som de guitarras vibrantes e as pessoas deliravam com mãos que abanavam em ondas de calor e êxtase. A voz falhava em gritos de entusiasmo dilacerado e o chão tremia e saltava em minutos onde o lugar dos pés era a vários centímetros do chão.
Corpos que roçavam na homogeneidade dos gostos e no uníssono de vozes em coro que se perdiam na multidão.
Perdem-se as personalidades e os sapatos em massas populacionais ao rubro em busca de uma existência com sentido.
Quer-se saber e mostrar que a música é o espelho, a alma, o cobertor e a pista de dança dos nossos dias. E numa narrativa-surpresa de notas ensaiadas atinge-se um deslumbramento colectivo e o que sobra são restos de pessoas.
Mares de suor que jorram dos poros dilatados das músicas de colunas gigantes, e no fim um momento de êxtase febril. Uma respiração. Um silêncio. Uma recordação.

15 julio 2007

É Verão

O sol arde e queima as gotas de suor dos poros bronzeados. É verão.
E no verão apetece dançar no meio da rua, saltar muros e vedações, espreguiçar um sono que não acaba.
Vou fugir daqui na estrada de terra que suja o carro e salpica os pés de alcatrão.
É tão ténue a linha entre a plenitude e a tortura.
A felicidade dói fraquinho, como pingos de água que caem espaçadamente. Já chega de sofrer.
A alegria aperta a mão com força num olhar confidente, gargalha de comentário inofensivos e arrepia a pele em músicas que encaixam na história.
A areia entra nos cabelos com cambalhotas de ondas inesperadas. O sol arde e solidifica o momento numa fotografia de céu azul.
Não há óculos de sol, e os jogos de cartas têm uma nova forma.
O Verão chegou, e com ele a plenitude perfeita da cumplicidade trabalhada. Aquela que sempre existiu.
Amanheceu Inverno e, de repente, a nuvem preta trouxe consigo recordações de bolachas de chocolate. Mas comi uma fruta. Porque é verão e quando o sol bate não há espaço para calorias. (nem recordações)

14 julio 2007

vicio do combate

É perigoso, tem arestas afiadas. Enfia na pela e faz sangue. Vai dormir que isso passa amanhã.
As pontadas latejam e contagiam o corpo estendido no chão.
Ali, deitada na alcatifa escaldada, ensanguentada de pensamentos de olhares.
E estamos a lutar.
A luta vai acabar um dia. Está condenada e todos sabemos disso. Mas vale a pena.
Vale a pena batermo-nos por alguns dias de sorrisos derretidos. Por algumas palavras inesperadas em dias de surpresa.
Mas à nossa volta, espalharam calendários de dias riscados. Atirem-me vidros para os olhos. Firam-me as pupilas com luz branca. Não quero ver nada.
E cega, de braços e pernas partidas, quero continuar a lutar. Quero mais e mais.
Chega de rodeios. Acabou.
Sempre que olharmos para trás vamos sorrir e gargalhar de bons momentos. Estamos mais fortes e dependentes desse vício do combate. E quem luta não se separa, tem laços de sangue partilhado entre feridas abertas e ardentes. Voltamos à nossa vida corriqueira.
Mas continuo a ser um alvo fácil e ensanguentado à espera do meu próximo adversário.
Quem sabe serás tu, outra vez.

09 julio 2007

carne-balão

E se estivermos todos a viver uma farsa?
Às vezes acho que a vida não passa de uma simulação decadente de seres errantes e iludidos. Voamos e chapinhamos nas lagoas esquecidas das florestas densas. Saltamos e cantarolamos pelas ruelas e avenidas, inchados por uma felicidade aparente.
Mas as agulhas são seres maléficos. Pequenas e afiadas, costuram e furam a uma velocidade alucinante.
A dor aguçada pica lentamente e vai penetrando na nossa carne-balão. Destrói dias e dias de oxigénio desperdiçado, aborrece as plantas que asfixiam a pureza da fotossíntese.
E o balão explode. Moléculas saltitantes nadam pelo ar poluído de chuvas ácidas. A agulha cai e vai perfurar a próxima vítima.
O balão é de hélio. A voz vai gritar.

08 julio 2007

o mundo gira

O tempo é uma máquina feroz que luta contra as leis da natureza. Mas tirei o relógio porque o tic-tac me dizia que o mundo podia acabar. Um dia.
De pulso nu, lanço-me para aventuras novas. Retempero as cores da paisagem, numa fotografia perfeita de meninas-modelo.
A porta abriu. Um passo tremido de insegurança inquieta.
Expectativas, expectativas.
Corpos que dançam músicas quaisquer, dedos que se entrelaçam e escorregam. Cordas desafinadas por hinos de sabedoria. Um sentimento que explode, qual lava crepitante, e sai pelos poros da pele em forma de fumo ardente.
Faz calor e a luz ilumina as frestas da janela. Revela vultos de segredos e declarações, de gelados e comida fria espalhada pelo prato.
E num abraço que esmaga, contorce e arrepia, tudo muda.
Vaipes de surrealismo e conversas de olhares cegos e confidentes.
Os dedos arrepiam as costas e manejam os lápis em desenhos de infância.
Agora posso conquistar o mundo.
Conheço os seus trejeitos e as suas manias. Sei que um dia ele vai girar.
O chão vai virar tecto e banda sonora vai começar com a frase “o tempo é uma máquina feroz”.

06 julio 2007

6ºf

A felicidade absorve o nervoso de barulhinhos na barriga. Mas uma palavra-chave faz com que o mundo congele e, de repente, o ar torna-se denso e deixo de sentir as mãos molhadas e escorregadias. Chamem a ambulância. Preciso ser internada.
Trânsito, caos, violência.
Tenho medo. Outra vez.
Cai o escudo e sinto-me nua à frente do mundo. Com os pelos arrepiados e os cabelos embaraçados em nós eternos. Sou um molho de rosa a dois euros na feira, um golo da água quente de ontem. Sou frágil e vou partir. Sinto-o.
A perfeição salta à vista nesta terra de gente vulgar com flashes brilhantes e fosforescentes. Tudo é colorido à minha volta. Normal: os olhos vêem cores.
Mas hoje as coisas parecem diferentes. Não estou louca, estão mesmo a tocar canções de júbilo na minha cabeça.
E tudo começa outra vez.
Os sonhos atribulados durante as noites de calor transpiraste, as previsões mentais de dias perfeitos de melancolia abafada. A lágrima engolida a seco no momento em que os deuses, os carros e os mendigos parecem estar contra mim.
A sensação vai passar, eu sei.
E vai ser rápido, porque afinal, hoje é sexta-feira.

03 julio 2007

Atenção, isto é um erro cientifico

A lua já está cheia há tanto tempo.
Dias e dias de luar baixinho iluminando as mentiras brancas de noites fugidias.
Quero negar e dizer que sou feita de cimento. Que nada me pode afectar, que sou rocha calcada no mar gelado, absorvente, congelante.
Mas não consigo. Os meus olhos dizem que sim, e o meu corpo pendura-se no teu pescoço num instinto reflexivo de sentimentos cozinhados.
Isto não estava nos planos. É um erro científico.
Voltemos às planilhas, aos gráficos, aos exames e aos cálculos matemáticos.
Não gosto de sentimentos. Essa deformação de enzimas a que chamam afecto.
Vou dançar no semáforo vermelho, enquanto o mundo entoa uma melodia qualquer. Não interessa a música, nem o tom, nem a tablatura.
Vou roçar o meu corpo em alcatifas queimadas e morder, morder, morder. Fazer dor até sair sangue e poder usá-lo para fazer análises.
Diagnostiquem-me. (Vou ser famosa e aparecer nos jornais)
Vivo um erro científico.