28 diciembre 2007

533 mil

Está tão perto.
Vejo-o ali, depois do terceiro buraco à esquerda. Cuidado para não cair.
Está tão perto que me suga como um aspirador de folhas das experiências científicas. Olha-me com um sorriso tentador. Uma prostituta eterna.
Vicias-me em ti e nas tuas promessas de amanhã. De uma vida passada que foi e não volta e que afinal não era assim tão apetitosa como o bolinho de carne e o molho de tomate. Ou talvez fosse até melhor. Um melhor mais açucarado, com mais gosto de uma cozinha de calorias baixas e bolachas integrais com água.
Tentas-me como se de um sonho de tratasse. Como se a cortina laranja e as almofadas coloridas me trouxessem um conforto extraviado que na verdade de perdeu na indelével inconsistência da plenitude.
Pára de me enganar seu chulo comedor de mentes.
Eu bem sei que não estas assim tão perto.
Ainda faltam alcançar muitos longes pra esse perto se aproximar.
A prefeitura diz que fecha 553 mil buracos por ano.
Vem daí a fama dos políticos

27 diciembre 2007

rolha de Natal

Todos temos aquele primo que está acima do peso e o outro que nunca se deu bem na escola. O anti-social e o que todos suspeitam (ou já suspeitaram) ser gay. Aquela tia que quando éramos pequenos dos dava os melhores presentes e chocolates e que agora “pois, está bem”. O tio afastado que nos faz rir e pensar “quem sabe eu tenha alguns dos seus genes”.
Não dá para evitar aquele pai que conta sempre as mesmas histórias e que queríamos tanto que tivesse rebolado mais connosco na relva. Uma mãe menos espalhafatosa, um irmão que fosse um pouquinho menos genial.
Não há como maquilhar.
Mas há um dia. Um dia só - que às vezes se traduz em alguns segundos fugazes - em que não trocávamos por nada os erros de português da avó estrangeira, nem as risadas barulhentas da prima do tio que veio por acaso. É nesse dia, no meio dos doces desmilinguidos e dos cacos de vidro no chão, que os oito mil quilómetros compensam. Culminam numa euforia de presentes, videogames antigos, de pistas, elogios e quilos de flashes fotográficos.
Este ano, levei com a rolha do champanhe na cabeça. Dizem que dá boa sorte. Eu digo que é mais um galo a cantar de madrugada.

20 diciembre 2007

"quando não estás,
cortam-se horas em golpes que sangram a merda dos dias.

quando não vens,
kamikazes e explosivos e corações de pétalas rebentam incessantes.

esquecer-me de ti.
encontrei a solução impossível."

José Oliveira

19 diciembre 2007

não estavas...

Acordei com os ponteiros ao contrário. O horário media umas horas estranhas e as ramelas desprendiam-se so-no-len-ta-men-te do cantinho dos olhos. Caiam águas despertadas na almofada e aquele grito de pássaro denunciava o sol. Quando abri os olhos vi fantasmas a passearem-se no quarto. Falavam comigo na língua das preguiças e afofavam a almofada para descansar melhor. Pescava sonhos acordados de olhos quase epilépticos, quase despretenciosamente reais.
À esquerda a parede. Faz figas, rezas e macumbas. Espreme as rugas da cara.
Mas à direita estava o cobertor de leopardo e o lenço perfumado.
Mais uma vez um sonho.
Quem sabe um dia tudo volte a ser real.

14 diciembre 2007

Ladra de palavras

Há pessoas que chegam e brilham.
Elas aparecem com o seu jeitinho de pai natal disfarçado, gesticulam e aumentam o volume da casa.
Fazem os sorrisos adormecerem nos lábios e todos quererem ficar para tomar mais uma caneca de chá.
Ela é assim. Abraça-me com o seu ar de praia e deixa escapar do seu rosto redondinho “que saudades”.
Como não se render à sua gargalhada tosca e ao seu jeito de dizer “acho que estas muito magra”? Ela “acha” sempre alguma coisa.
Valeu lhe a opinião neste mundo de viagens e mudanças de rota. Na vida da discriminação acentual. Ela e o seu charme genuíno que conquista a senhora das revistas, o moço da farmácia e o secretário do medico. Ela também já foi disso e, na verdade, já foi de tudo. Nunca se achou.
Preferiu fingir-se de perdida numa família cheia de mapas e direcções. Agitar o ritmo desta casa sem música e cheia de “a conjuntura do país está visivelmente favorável”. Ela não gosta dessas coisas nem do telejornal pois “passa na hora da minha novela”. Mas ensina à filha pequena: “é preciso ver novela para depois estares dentro das conversas”.
No seu mundo fala-se de novela das oito e da coitada da Karen Maria que foi traída pelo Mário Roberto. “Um absurdo!”. Por cá também. As fofocas vão desde o Tratado Lisboa à cassação do Kassab. Inaceitável.
Era esse brilho de decibéis intoleráveis de que estava a faltar. Esses que fazem tatuagem na cabeça e olhares melancólicos.
E ontem ainda teve a audácia de me dizer do nada “Sem a ti a casa não tem graça nenhuma”.

09 diciembre 2007

tudo

A cabeça lateja uma dor traiçoeira de mais uma noite pensativa. Sonambolei no corredor sem saber o que fazer, perdida na casa do chão de pedra e nos gritos do bem-te-vi.
Esbarraste em mim.
Tropeçaste naquele mundo só meu de lágrimas de alegria e voz de rapariga durona. Escondeste-te no meu bolso com cuidado para não ficar com os pés de fora.
Sorrias sempre que eu me enganava, me esquecia ou fazia uma rabugisse imperdoável. Perdoavas. De olhos espremidos e certezas asseguradas.
Só não podia haver próxima vez.
Nunca houve.
Porque no dia seguinte viviam-se ressacas de embriaguez sentimental, de sussurros nocturnos em areais semi-iluminados.
Mas fui te alimentando e deixando-te pesado. Gordo de churros com doce de leite, balas de goma e gelado com cobertura de chocolate. Reclamavas de frio nos pés e que o vento deixava o teu cabelo despenteado.
O bolso rasgava-se, como a borboleta preta a sobrevoar a cozinha. Costurei, reforcei, três e quatro pontos duplos. Nada.
Enganei-me.
Queria dizer, tudo.

04 diciembre 2007

Cai pulseira, cai

Toca telefone, toca.
Deito-me na cama num descansar hirto, numa postura séria de quem finge descontracção. Imagino como será a conversa.
Pergunto e respondo, com um ar superior, de quem irá ponderar o convite. Negoceio.
Há que saber dar-se valor.
Tenho de tomar cuidado para estar sempre com o aparelho em alerta. Talvez faça dele um acessório de moda, ou implante aqueles chips que se atendem com o dente.
Prioridade: ouvir o toque.
Já decidi que não vou mais a concertos, nem discotecas, nem pubs de música alta.
Atenção: o ouvido é o teu melhor órgão.
Toca telefone, toca.
Os dedos tremem no enviar. Formigas sobem-me pelo umbigo a cada chamada não atendida. “Eram eles, eu sei”.
Mas se fossem o destino estava apenas a brincar comigo. Este grande sábio que agora parece ser gay. Um dia disse que gostava de ter um filho homossexual. As pessoas riram-se.
Divago para não me lembrar que o meu olho direito está a piscar aqueles tremeliques que mais ninguém vê. Fujo para não ouvir mais uma vez a pergunta “já tocou?”
Mas, se um dia ele tocar, acho que vou guardar o toque para mim. E apenas os mais atentos irão notar. Porque o verdadeiro amigo repara quando a pulseira cai.

03 diciembre 2007

o samba dos focas

As consoantes mudas estão encarceradas na mais longínqua prisão. O “tu” foi para o paredão de fuzilamento, junto com o “connosco”, o “negoceio”, o “autoclismo” e o “telemóvel”. A minha cabeça deixou de lado as sirenes de alerta que disparavam sempre que eu lia “ação”, “inadimplência” ou “ególatra”. Agora penso num sotaque neutro, cheio de “todo o mundo”, “legal”, “galera” e “ponto de ônibus”.

Esqueci de me apresentar. Mas é fácil. O Chico Ornellas costuma descrever a 18ª turma do Curso Intensivo de Jornalismo Aplicado da seguinte forma: “São trinta alunos. Quinze de São Paulo e quinze de fora. E uma estrangeira, a Marina, que veio de Portugal”. Essa sou eu.

“Portuguesa de araque”, me descreveu uma vez um foca. A brincadeira acabou por se tornar a minha mais perfeita definição. Brasileira-portuguesa ou portuguesa-brasileira? Depois desses três meses, prefiro deixar a resposta em branco.

Agora me parece tão distante o primeiro dia em que o Luiz Carlos Ramos nos disse: “Eu vou passar uma pauta para vocês.” E eu franzi a testa e pensei: “O que será que é uma pauta?”

Mas esse dia passou rápido. A família dos focas me acolheu e me pegou para criar. Com paciência e determinação me alfabetizaram a este país e esticaram os meus horizontes. Foram noites sem dormir pensando na matéria que tinha que entregar às 23:59, analisando os possíveis erros e repassando as dicas de texto e regras do manual.

Propaganda enganosa. Isto não é um curso, é uma familia-escola. A forca e o chicote pendurados na sala, bem tentam amedrontar os focas mais ingênuos. Mas bastaram alguns dias para entendermos que na escola dos focas, a aprendizagem tem gosto de churrasco e noites de violão. Ritmo de samba-enredo cantado num bom paconhol.

Foi necessário atravessar o oceano para conhecer o meu vizinho Paco Sanchez, o “pai” do já famoso paconhol, e aprender a importância de um texto ousado, porque afinal, “No pasa nada, e se pasa, que importa? E se importa, que pasa?”.

Agora o samba dos focas está chegando ao fim. Os meus pés continuam se mexendo freneticamente ao ritmo de 12 horas por dia de redação, sem fins-de-semana ou feriados. Ainda não sei sambar muito bem, mas uma coisa eu sei: Samba, que é samba, não tem compasso final. E foca, que é foca, nunca vai desistir de sambar.

29 noviembre 2007

O futuro presente de um passado longínquo

Nunca fui boa com passados. Persiste em mim certa dificuldade de entender o que já foi e o que ainda é. O presente arrasta-se numa lentidão de sinais proibidos, de linhas brancas riscadas no chão, de compassos de espera em músicas electronicas.
E a cada recomeço é impossível apagar o que fica para trás.
Ele surge e volta e escapa-se do armário onde o tranquei. O bichinho rói a madeira e esquiva-se das ratoeiras. Esconde-se em caras conhecidas e sentimentos familiares.
O ano está a chegar ao fim.
Com ele as listas e as cores simbólicas, as prioridades e os objectivos.
E o que é futuro e o que é presente? O que é futuro passado no presente anterior? As ilusões e os sonhos rodopiam a cabeça. A lama do chão desliza e faz cair.
Papel e caneta. Teclado e tela branca. Vamos lá.

25 noviembre 2007

direitos de autor

Planos equívocos em calendário incertos, dúvidas e ilusões que atormentam o pensamento. Os dias riscam-se e o relógio alerta: o futuro é um monstro sem face e violento.
Os meses rastejam numa agonia inesperada, remoem os órgãos e embaciam os cabelos. Os olhos, coitados, são os que mais sofrem. Eles e a sua visão futura incompleta.
O pensamento torna-se algo impuro. É difícil contornar suas viagens. A luz falha, seca e faz birra. Resiste. E hoje brilha num tom mais forte.
Todas as caras que vejo são dela. A luz que se esconde atrás das escadas, que grita por socorro com olhos de malária, que teima, teima, teima mas não pára.
Em cada dia e cada noite, o duelo se intensifica, os soldados se agridem e os heróis são condecorados.
Os mortos e os feridos recuperam-se. E as chamas permanecem ainda inabaladas.

24 noviembre 2007

Danguetis

Para ela nuguets é danguetis, self-service é servi-servi e nectarina é naftalina.
Todos já estamos habituados ao seu linguarejar atrapalhando, tropeçando nas palavras sem nunca cair. E quando, timidamente, a corrigimos, ela ri uma gargalhada profunda e balbucia em ritmo de tarantela. “É isso mesmo. É que eu não sei dizer direito”.
Ninguém resiste àquele rosto de menina que ainda está a aprender a viver, às birras de criança saída do berço, às manias aprendidas na televisão.
- Tchau. Estou indo.
E lá vem ela atrás de mim, num passo de pinguim apressado que reclama do calor e do frio.
- Pegou um casaco? E a maçã?
Foi assim que ela aprendeu a adaptar-se ao mundo. Fazendo da correria uma gigantesca rotina de obrigações e prazeres que desfilam diante de si.
- Já chegou? Ah é, você chega mais cedo na quinta-feira, né?
Não. Mas de que adianta contar-lhe que hoje o professor faltou, que o trabalho apertou ou que o cansaço bateu?
- Hoje é quinta, tem macarrão. Tá no forno é só aquecer.
Fala com os “pés para o alto” na sua posição de novela mexicana. Diz, despreocupadamente, como se acreditasse mesmo que eu seria capaz de aquecer sozinha o jantar. “Ah, deixa que eu aqueço, vai” acrescenta numa espontaneidade teatral em tom de mãe benevolente. E eu deixo sempre.
É então que me conta do calor e do frio. E do tio que se magoou e da tia que está velha. Detesta velhos. Logo ela que nunca se senta para comer “porque comer sentado engorda”.
- Já são dais, vou dormir.
- Dez, nonna.
E lá vem a gargalhada de novo. Com as bochechas rosadas e um abanar dos cabelos encaracolados.
-Amanhã é sexta. É o dia que você acorda cedo, né?

Buona notte. Sogni d'oro.

19 noviembre 2007

Bílis de lesma derretida

A incerteza come-me as costuras. Bichinho vagaroso, lesma indolente, apática, preguiçosa. Não se limita a roer o fio e a desfazer o nó. Claro que não. Lesma pateta, imbecil. Ela vai ao casulo e saboreia-o com água a escorrer-lhe pelos beiços.
A minha barriga ronca um enjoo intragável e o corpo verga-se numa angústia sonora de choro seco e dor pontiaguda.
Em rodopio a cabeça segue o exemplo e viaja em ruas esburacadas e em rios de asfalto com esgoto entupido. A culpa é do prefeito. Mais uma vez.
O pecado nunca é nosso. É da mão invisível que não nos tocou, é da oportunidade falha, da roupa mal escolhida, daquela piadinha que não pegou.
Sou pura bílis e lesma desfeita. Sinto-a a romper-me os tecidos, a fazer de mim sanfona popular.
Não caibo no armário porque está grande e está pequeno. Não consigo decidir com gordura efervescente a borbulhar-me a cabeça.
Acho que estou a entrar em erupção.
Perigo.
Saiam das vossas casas. A lava costuma desfazer lares, destruir cidades, corroer corpos humanos, um a um com um sorriso diabólico de satisfação.
Este é o último aviso.

17 noviembre 2007

O Colchão.

Ele chegou. Entrou pela porta, meio de lado, meio escondido naquela roupa nova que mais parecia um saco plástico.
Displicente, diriam por cá.
Até gostei do seu jeito meio durão de andar, do seu ar pesado e maduro.
Foi entrando e nem perguntou.
Agora está no seu altar de destaque, no pódio atractivo de olhares.
Tantas esperanças e expectativas. Imagino-me imersa numa banheira de perfume familiar, colorida no abraço macio daquele momento. A voar pelos pessegueiros, com areia a fazer cócegas nos pés. Quero-me num mundo de balas de goma e dores de barriga com lábios rasgados. Os pontos de exclaçao substituem os finais. E as interrogativas? Essas são festas no salão de jantar do Titanic.
Traz-me de volta os sonhos.
Por favor.

15 noviembre 2007

Grândola

Estamos em guerra. Mais uma vez.
Escondam-se em vossas casas, activem os alarmes, tirem do baú aquele colete antigo à prova de balas.
Tiros e turbilhões de mensagens subliminares, vendavais de homens estendidos no chão e rios de sangue diante dos nossos pés. Não aquele sangue vermelho e brilhante, um sangue escuro, quase preto, quase de luto pela morte dos seus soldados.
A cera não é suficiente para proteger os tímpanos daqueles zumbidos ensurdecedores de tentação e luxúria. Quero falar e a voz não sai, o código morse parece-me tão pouco poético. Incerto e dúbio como linguagem construída para confundir os inimigos.
Em guerra é assim. O vencedor é quem resistir mais, quem matar com mais força e convicção os obstáculos que surgirem. E, às vezes, estamos tão próximos de morrer. O inimigo aparece, com falinhas mansas, e quase nos convence a darmos um tiro no próprio pé. Quase nos faz passar para o outro lado, desistir daquilo em que acreditamos.
E ultrapassada mais uma etapa, vem outra bomba, e outro um amigo morto em combate. Vem a falta de comida, a exaustão física. O caminho mais fácil está ali, nos outodoors de propaganda política, no sorriso dos casais recém formados.
Já não tenho família e escrevo todos os dias os meus princípios numa folha de papel para não me esquecer do que me trouxe até aqui.
Estou a chegar ao limite.
Quem sabe esteja na hora de desistir, ou talvez de invadir as rádios e pôr a tocar o “Grândola vila morena”.

“Eles também não tinham coragem.
Mas raptaram muitos entes queridos
E às tantas... já não dava”

13 noviembre 2007

aquele vestido branco

É como aquele vestido branco no fundo do armário. Ele fica-me bem, a sério que fica. Até o meu pai gosta! Mas eu nunca o usei.
Não é que nunca o tenha usado mesmo. Usar do verbo usar. É que nunca lhe dei uso.
Ele tem um problema. (Já disse que me ficava bem?) É que não é lá muito oficial.
É comprido mas não o suficiente. Tem brilho, mas às vezes brilha demais. Ocasionalmente, aquelas costas abertas parecem-me um pouco desnecessárias.
E depois há o problema dos sapatos. Eu até poderia usar com aqueles meus sapatos brancos novos, mas nunca me apetece. Tenho vontade de comprar uns sapatos vermelhos e pôr um batom. Mas depois acho que não cai lá muito bem. Opto pelas sabrinas pretas e malinha a condizer a tira colo. Mas acabo sempre com a ideia de que é meio sem sal.
De facto, é apenas uma questão burocrática.
Mas na prática é tão mais complicado do que isso.
Passo noites a pensar naquele vestido branco. Em como desde o dia em que o experimentei na loja, tive a certeza de que seria meu. Eu sou bastante possessiva quando se trata de vestidos. Obriguei a senhora a prometer-me que não encomendaria mais nenhum vestido, porque queria que o meu fosse exclusivo. Cheguei até a voltar lá umas tantas vezes para me certificar que não havia vestidos brancos à venda. E nada. Senhora honesta, como já não se vê por ai.
Lembro-me também das vezes que o usei. Parecia perfeito. Todos elogiavam o meu vestido e a minha escolha. E eu sentia-me realizada. Queria pô-lo todos os dias e dizer ao mundo que era meu e só meu. Fazer ciúmes e snobar os outros.
Mas houve um dia em que a moda ditou: vestidos brancos? Totalmente fora.
E o vestido ficou ali, no fundo do armário à espera que um dia, quem sabe, possa torná-lo oficial novamente.
E, enquanto isso, torturo-me devagarinho cada vez que dou por mim a olhar para outros vestidos nas lojas de marca.

11 noviembre 2007

A caixa

Lembro-me de quando brincava às escondidas e o meu adversário entrava no quarto. Eu fechava os olhos, como se isso me tornasse invisível, e parava de respirar.
Ficava ali, de testa franzida e músculos paralisados, rezando para ser camaleão.

Quando vi aquela caixa, espremi os olhos, bem juntinhos, apertados e enrugados. E tenho a certeza que desapareci naquele momento.
Foi como se uma nuvem de ontem se misturasse dentro de hoje.
E o resultado era uma plenitude histérica.
O sorriso tinha barulho de borboletas e a barriga tremia junto com as pernas de dentes a brilhar. Não sei bem. Tinha todos os sentidos desorientados numa agonia de convulsões e espasmos escapatórios.
Era como se ali, dentro daquela caixa rasgada, pudesse encontrar a resposta.
Não podia mais esperar, era só dar um passo.
Mas tudo parecia tão surreal, como se uma corrente invisível me prendesse ao chão. Isto não me podia estar a acontecer. Eu nunca tive sorte nestas coisas. Belisquei-me.

O meu adversário saia do quarto. E eu sentia um calafrio de vitória a percorrer-me o corpo. Nunca fui boa a jogos. Não estava habituada a vencer.
Agora só faltava correr e gritar as palavras mágicas da felicidade infantil. Já tinha passado mentalmente o plano esquemático na minha cabeça. Estava decorado ao pormenor.
O primeiro passo era abrir os olhos.
Sai camaleão, mostra-te, faz-te forte, enfrenta o mundo.

Lusa

Eram sentimentos desnorteados, que caminhavam sem rumo pela cabeça latejante.
Uma vontade de fugir.
Chega ao quarto, pega na tua mala, enfia uma roupa qualquer (porque naquele mundo não é preciso secador nem duas calças de ganga) e não te esqueças do chapéu. Puxa as rodas e não ligues ao trolitar que fazem no passeio rasgado. Já estão habituados.
Não precisas disto, nem do sorriso forçado. Não precisas sentar e observar que não é ali o teu mundo. Basta correres até o ar ofegante te faltar. O movimento é simples. E se vires o mar, nada. Para que serviram 15 anos de aulas de natação?
Mas ali havia surpresas de passeios matinais, músicas novas decoradas ao descaso, bolo e balões que surgiam com bebidas flamejantes.
Havia o dormir despreocupado, as greves da faculdade, o intercâmbio aos doze anos, o movimento sem terra. O sol que batia devagarinho na pele branca e contava aventuras de adolescentes inconsequentes, confissões de estudantes excluídos.
Havia as mentiras e as discórdias, os dramas e o deixa andar.
E enquanto a certeza continuar a escapar-me pelos dedos, vou saltar em concertos electrónicos, comer quitutes australianos e conhecer a lojinha do senhor Fernandes.
- E ai Lusa? Não vai comprar nada?

28 octubre 2007

Vais?

Não era ele.
Nem a maneira como se baixava para me cumprimentar com um beijo na testa.
Não era ele.
Nem as caretas que fazia quando não gostava da comida.
Não era ele nem a sua mania irritante de querer pagar sempre a conta, levar sempre a mochila, conduzir sempre o carro e aconchegar-me no seu abraço.
Acho que era eu.
Com os pés no vidro do carro e o cabelo despenteado. A cantar canções convencionais em ritmos exóticos.

- Vais?
- Então vamos.

Era a maneira como íamos.
A flutuar por cima da vulgaridade.
E agora resta-nos navegar pelos oceanos satelitais. Procurar desesperadamente uma costa. Chorar com o Wilson desbotado.
Não era ele. E agora acho que também não era eu. Talvez tenha sido um erro de cálculo. Um clone que apareceu naquela Fosters à beira mar.

- Vais?
- Queria tanto poder ir também.

26 octubre 2007

minhocas

Tenho um problema.
Um dia acordo assim, e outro acordo coisa e tal.
Um momento estou okay e no próximo nhénhénhé.
Chamo-lhe minhocas.
Esses bichos de léxico divertido, que gosmam as nossas cabeças.
Lentos esses animais. Custam a sair.
Está ali a porta, vai, adeus, não te quero mais ver.
Mas são vaidosas. Gostam de mostrar o seu físico, toda a sua envoltura, a sua pele transpirada, o ar crocante e o seu cheiro de terra apodrecida.
Orgulham-se disso, coitadas.
Sensíveis elas. Não lhes ouses tocar enquanto desfilam a sua marcha territorial. Não as atices.
Quando ficam nervosas expelem água salgada e cuspe acumulado. Dão enxaquecas e pedem lenços de papel.
O melhor é tratar delas com carinho.
As minhocas esticam e fazem crescer. E se tivéssemos centopeias?

24 octubre 2007

naquele dia

Ele é assim. Imprevisível.
Um dia estava em casa e tinha acabado de tirar o pijama.
Ele apareceu.
Disse que estava decidido. Que lá íamos nós em busca de aventuras ciganas.
Eram muitas horas naquele carro emprestado. Que bom, pensei. Mais tempo para conversar. E ali falou-se de tudo.
- Mas eu não gosto dessa música.
E a próxima era pior, e pior, e pior. E lá fomos nós entre fofocas e inutilidades. Entre vidas alheias e memórias reveladoras. É sempre bom conversar enquanto o sol aquece o dia e a água rochosa.
E o assunto nunca faltava. Já não havia carro e a areia entrava pelas dobradiças do corpo e fazia crek crek.
Não havia professores, nem nota final. Não havia inquisição e nem censura e ali , no fim do mundo, podíamos dizer aquilo que quiséssemos.
E depois de um comentário qualquer sobre uma qualquer coisa inútil e insignificante, caímos na risada.
Gargalhadas de lágrimas e dores de barriga. Sorrisos que fazem sangue nos lábios de cieiro e que incomodam os vizinhos de toalha. Rebolamos em pensamentos hilariantes e viajámos pelos comediantes mais conceituados.
E, no fim, entre gargalhadas que rebentavam com as ondas e tentativas desesperadas de respirar, disse:
“Mas o que é que eu faço a um miúdo como tu?”
E ele respondeu, de olhos brilhantes.
“Amas”.

21 octubre 2007

Memórias de Emília, 1936, Monteiro Lobato

"...a vida, Senhor Visconde, é um pisca - pisca.
A gente nasce, isto é, começa a piscar.
Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos - viver é isso.
É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais.
A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso.Um rosário de piscadas.
Cada pisco é um dia.
pisca e mama;
pisca e anda;
pisca e brinca;
pisca e estuda;
pisca e ama;
pisca e cria filhos;
pisca e geme os reumatismos;
por fim, pisca pela última vez e morre.
- E depois que morre - perguntou o Visconde.
- Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?"

18 octubre 2007

Rumo a leste

Há coisas penduradas no meu armário.
São como precipícios materiais, abismos consumistas, pontos de interrogação por concluir.
Elas estão ali, suspensas, como se eternamente à espera de um apoio.
De cabeça para baixo, com os pés colados no tecto o cabelo fica despenteado. Ninguém gosta de parecer desleixada. A roupa vai caindo e o corpo se mostrando arrepiado, trémulo, inerte e liso neste mapa assustado de sonhos.
Os cabides servem para isso.
Suspendem os objectos e confrontam-no com o pior da vida.
Todos nós temos vertigens. Todos temos mais do que cinco quilos de sangue a girar pelo corpo.
É inconsolável abrir o armário. A tosse vem com o pó dos objectos esquecidos e as lágrimas pastosas caem por cima das promessas e alvos.
Tudo ali, pendurado. Á espera de um juízo final.
Desfazer-se em cinzas. Encontrar um dono que o pegue ao colo e o leve a passear. Talvez em direcção a leste.

17 octubre 2007

chocolate

Somos todos estrangeiros, forasteiros, fugitivos de vidas monótonas.
Somos errantes, cobardes desta agonia simplificante.
Talvez todos não. Apenas aqueles que vêm na odisseia uma possibilidade de vida. Aqueles que nunca acham que chegou a hora.
Caracóis itinerantes e curiosos, cujas barreiras são o horizonte inatingível.
Começar de novo está tatuado no nosso corpo, é expelido, pingante, dos nossos poros.
O primeiro dia, o primeiro passo, a primeira letra da página em branco.
E aquela mulher, de olhos de vidro, que investe em nós partículas do seu corpo. Que acredita (e não que diz acreditar) que um dia também nós doaremos os olhos a uma causa.
Ao apagar, limpar, seleccionar. Ao enviar, ver e controlar para que nada escape pela visão fixa de um órgão perdido. E no fim, todos vão criticar. Editar, melhorar, corrigir.
Mas ela só tem um olho. E para os seus óculos a vida nunca foi doce.

14 octubre 2007

cantinho de mundo

As pessoas crescidas já não vão à escola, nem têm trabalhos de casa.
Elas sabem que não se pode ir trabalhar de mini-saia nem com as unhas pintadas de laranja, que os decotes não são aconselháveis e que as gargalhadas desconcentram os colegas.
Os grandes falam baixo e dizem bom dia, sorriem e disfarçam, dizem umas mentirinhas para fugir ao trabalho.
Os crescidos gostam das crianças, fazem caretas e vozes engraçadas, beijam, agarram, amassam aquelas gorduras cheirosas.
E são tão superiores a elas.
Qualquer reacção mais torta, mais espontânea, é reprovada. Porque parecer uma criança, não é lá muito bom.
Outro dia descobri uma porta secreta. Fui espreitar porque cheirava a algodão doce e tangerinas. E encontrei. Ali dava para subir às árvores, cair, chorar e ter sempre alguém que dissesse que iria ficar tudo bem. Dava para me sujar, despentear, fazer caretas e cantar diparatadamente. Ali não havia o “tens de” nem o “não me desiludas”. Seus bichos malvados.
E ali, naquele cantinho de mundo, podia fazer birra e beicinho, podia gritar e chorar.
Porque os homens às vezes são ratos.
Escondem-se por trás do tailleur e do fato completo.
E perguntam às inocentes crianças “mas tens quantos anos afinal?”

11 octubre 2007

apagada

As pessoas têm luzes que iluminam as suas cabeças. Têm fechos que ofuscam e rebatem nos espelhos à sua volta.
Por vezes essa luz funde, acaba, se extingue no terreno da convivência diária.
Não tens tempo de respirar.
Faz, escreve, articula, acontece, opina pergunta.
Tens de ser genial.
Sai tudo tão fácil e espontâneo.
E sentes-te a minguar. Cada vez menor e menos apta. Cada vez mais desistente e perto da exaustão.
Dizem que já não tens a luz que costumavas ter. Que não consegues mantê-la acordada.
Não faças caretas. Nota-se tão bem.
Nunca fui boa de fingir.

08 octubre 2007

"provavelmente"?

Que raio de ideia essa tua.
Estanhos os rumos que a vida tomam.
Éramos tão fresquinhas e inocentes. Tão idealistas e sonhadoras.
Ela pequena e frágil. Eu excêntrica e hiperactiva.
Mas lá estava ela todos os dias no comboio. No carro. Nos auditórios. Nas horas do almoço. Na hemeroteca. Na esplanada amarela.
Nos cafés. Na praia. Nos restaurantes. Nos concertos. Na baixa. No meu caderno. No telemóvel. Nas notícias do jornal. Nos cartões postais da viagem. Na minha Neverland.
No meu quarto.
Lá estava ela na minha vida.
Foi entrando devagarinho e partilhando das minhas indignações. Ensinou-me a ser mais tolerante e comedida. Menos veneno e mais perfume. Ela nunca diz mal de ninguém.
Mostrou-me como se vê as coisas com bons olhos, como se acredita nos sonhos e num futuro melhor. Como se luta e se conquista.
E quando voltei ao mundo foi a ela que telefonei.
E foi ela que me arrancou uma lágrima cruel ao desligar o telefone frustrado.
Foi ela que estava lá a rir-se da minha racionalidade estúpida. A incentivar um mundo de leite-creme derretido, um futuro possível, um sonho quase real.
E é a opinião dela que conta quando as coisas apertam. E é dela que tem de sair o “está óptimo, vais conseguir”. E nessa altura quase acredito que seja verdade.
E, não, eu não sou lésbica.
Era ela que sabia o que eu tinha almoçado e o que eu trazia vestido. Que sabia na ponta da língua que sou chata e rabugenta e que fervo em pouca água. E que discuto e esperneio e grito. Mas não se importava, porque não vale a pena. Ela também sabe que não vou mudar isso.
E não posso ter saudades nem dizer coisas queridas. Porque os amigos completam-se e essa parte fica para ela.
Ela um dia (triste esse dia) escreveu-me uma carta. E nessa altura descobri que não há mais ninguém no seu lugar. E eu vou só fazer uma correcção. Porque não podia fazer um post sem resmungar. Pega naquela tua carta e tira a palavra “provavelmente”. A tua prima não se vai importar. São tipos de amigas diferentes.
A minha mãe diz que eu só tenho amigos rapazes. Mas ela queria ser uma princesa quando era pequena.
Tornou-se biscoita e salsicha fresca. Parideira e meloa.
E para quem não sabe, aqui vai um segredo.
Ela odeia que a belisquem. E é tão giro vê-la chateada.

05 octubre 2007

Sim! Sim? Sim.

Quando te sentires vazio, bebe água, isso deve manter-te cheio por uns tempos.
Às vezes acho que tenho buracos.
Embriagada no mundo das letras e das frases simples, das histórias e dos personagens. Na missão e no dever.
Entregue, como criança mimada, a este lugar onde as pessoas insultam a gramática, aterrorizam a cultura, matam à facada a ambição.
Onde tudo é baixo e tudo é pouco. Onde querem mais e mais dos medianos de saltos altos.
Abandonada neste emaranhado de emoções e sensações físicas, de rolos de pensamento sem fim, de tremeliques e piripaques ao sabor dos orçamentos.
E um sim é tudo o que eu espero a cada vez que me queixo das costas, que resmungo com o tocar do despertador, que grito com o empregado público, que degluto os alimentos tristes e deprimidos.
Os índios civilizados confundem o “sim” com o não e o talvez. A comunicação torna-se mais difícil.
Só espero que isto tudo não seja uma grande partida.

01 octubre 2007

o Trigésimo

Hoje vou contar uma história.
Um dia conheci um rapaz, ops, não foi um, foram 30.
O primeiro era divertido, o segundo eu achava um pouco infantil. O terceiro e o quarto usavam roupas largas e andavam de skate. O quinto era gordo e o sexto roçava a obesidade. O sétimo era bastante inteligente e o oitavo era tão arrogante. O nono passava horas a conversar à porta da minha casa e o décimo nunca se esquecia do meu aniversário. O 11º sabia que em jornalismo a partir do 11 se escreve por números. O 12º desenhava tão bem e desperdiçava tanto as suas capacidades. O 13º cresceu. O 14º mostrou-se interessado nos meus interesses e o 15º ria-se das minhas histórias. O 16º e o 17º eram tão esquisitos e cheios de tiques. O 18º nunca desistia. O 19º dizia que com calções não se pode atar os sapatos e o 20º deitava-se sempre na areia.
O 21º era tão carinhoso. O 22º e o 23º andavam sempre juntos, um adorava música e cantava baixinho, o outro bebia muito e fazia serenatas para a vizinha inglesa. Dizem que o 24º era um pouco banana mas ele defende-se dizendo que estava apenas apaixonado. O 25º gostava de gelatina amarela. O 27º ralhava e o 28º estimulava-me a ser melhor. O 29º, coitado, ficava antes do 30º e então sempre teve medo do seu futuro.
Esse tal de Trigésimo (os nomes próprios são por extenso) foi o meu preferido. Se calhar sou uma criança iludida que acha que o último presente é sempre o melhor. Mas o Trigésimo foi um presente inesperado. Ele veio muito bem embrulhado, cheio de fitas de laçarotes. Entregaram-no na minha casa com um casaco de couro castanho e um carro sem o espelho direito. Era como aquele presente que vamos abrindo e abrindo até encontrar a prenda a sério. Tinha um embrulho bonito e eu fiquei interessada. Fui me aventurando e encontrei uns papeis rasgados e umas fitas-cola difíceis de arrancar.
Insisti.
Não foi fácil abrir aquele presente. Ameacei deixá-lo e desistir. Quem foi a pessoa que teve a ideia de o embrulhar tão bem?
Mas ainda bem. Senão já teriam o descoberto, posto em leilão e licitado um preço muito mais alto do que o que posso pagar.
Era baratinho aquele presente. Era daqueles simples e úteis. Inteligente esse tal presente. Foi conhecendo-me e tornando-se indispensável. Aparecia em casa quando estava cansada e ajudava-me a adormecer, deixava-me escolher os caminhos e impunha-me sempre a sua música. Ele começou a meter-se no meu bolso e na minha mala, nos meus ténis sujos e no meu top colorido. Enfiou-se no autocarro cheio a segurar as sacolas das senhoras e nas aulas de filosofia enquanto discutia politica. Ele era o computador e era o livro que estava a ler, era a cor do verniz e a fruta da sobremesa. Meteu-se na minha vida e infiltrou-se no meu perfume e nos brincos que usava, nos amigos que escolhia e nos objectivos que traçava. Mas o pequeno presente, que é tão quietinho e que fala pouco, virou-se para mim e disse: um dia vou materializar-me. Então eu acho que vou ficar à espera, porque depois de tanto trabalho estou um pouco cansada para voltar a desembrulhar outro primeiro.

29 septiembre 2007

cola peganhenta

Hoje acordei com o vento a sussurrar baixinho. Parecia haver fios invisíveis a puxarem estridentemente os meus músculos. Eles contrariam-se em forma de boca aberta e lábios erguidos. Músicas cantaloravam na minha cabeça, como vozes de divas vindas de lugares perdidos.
Porque há coisas que nos fazem pensar. E há objectivos que não são para daqui a uma hora, ou um mês. Há coisas na vida que são para longe. Que são para o lugar onde a cidade borbulha e o horário esmaga a correria atribulada. Há momentos da vida com cores e cheiros, com raças e idades e instantes.
E atingi-los não é um sonho.
Fitas vermelhas no fundo do túnel que nos fazem querer correr mais depressa, e virar na esquina à esquerda, em busca de um caminho mais rápido. (Nunca vires à direita. Pode haver um precipício). Viagens ao mundo em busca de um eu que se perdeu nas birras e das palavras pingadas no papel. A busca de uma solidão acompanhada.
E às vezes atrelamo-nos às pessoas.
Têm um cheiro confortável, um sorriso familiar, uma parte deles que é sé nossa e fica escondida no fundo oculto do saquinho de recordações.
E nesta matéria não há chaves. No mundo das solidões não há serras eléctricas e nem cadeados. Foram abolidos, proibidos, censurados.
Este fascismo de descampados colectivos é uma tortura pequenina que pica, mexe, coça naquele lugar onde é impossível tocar. E vai se tornando maior.
Até que um dia recorremos à cola.

contrariedades

As diferenças gritam e exclamam e goleiam na baliza oposta. Dizem que não conheço o suficiente. Pode ser.
Sou demasiado eu mesma na minha concha, no meu pé e meio de distância, com sorrisos e carinhos corteses. Sou fugidia nas brechas e nos silêncios. Sou sombra estrangeira que observa e pensa.
O olhar altivo e brioso de quem é mais, de quem pode ver de outra maneira. E a mistura é difícil e é emproada, porque entoam os olhares de quem partilha do mesmo mundo. E sem erro, nem dúvida, batem naquela parede invisível, tão morosamente erguida. Esmagam-se e ensanguentam-se. Porque ali só passa quem souber. E saber é reconhecer o parco, limitado espaço.
Há valores e há listas. E há futuro, futuro.
Às vezes acho que o presente é efémero. E outras vezes quero guarda-lo para sempre no meu congelador.

28 septiembre 2007

desculpas desculpas e desculpas

É uma batalha constante de sins e nãos de perto e longe. Espadas que lutam com a volúpia de carícias escondidas, correntezas de murros e arranhões em mares onde o peixe é tubarão. Vem, mata, morre. Tortura-me com olhares e palavras, arrasta-me por esse rio de dúvidas e hesitações e consome-me, qual labareda resplandecente.
Somos todos poemas e sorrisos secretos, histórias e gestos cúmplices, palavras e gostos memoráveis.
Porque a distância é um cliché.
Ali tudo é possível e o sentimento é temperado num tubo de ensaio com água ocular e cabelos lambidos. É tudo tão perfeito quando o tempo é pouco e as coisas boas têm mais valor notícia. Elas explodem e circulam, cirandando pelo ar e mudando de cor à medida que o vento sopra baixinho.
E à distância é possível suspirar e deixar cair lágrimas de desespero feliz. E à distância podemos ser foleiros e lamechas e pegajosos e piegas e, finalmente, dizer aquelas coisas que soam alerta na nossa cabeça. Não interessa o sinal vermelho, nem o stop, nem os quilómetros. Porque à distância podemos tudo. Até cliché.

23 septiembre 2007

um especialista

Queria uma bola de cristal. Agora que o vinte e um está por perto, achei que deveria montar uma lista de presentes. Os números adicionais apanham-me sempre desprevenida. Desta vez não quero festas, nem amigos (quais?), nem telefonemas.
No topo da minha lista vem escrito, Arranjem-me uma bruxa, uma pedra preciosa, um baralho de cartas, um espelho mágico.
Vou ser criança mimada que esperneia e gesticula, que grita e irrita. Aquele bebé intragável que faz birras insistentes até conseguir o que quer. Transformei-me, regredi.
Não é um pedido assim tão difícil. Nem um objectivo demasiado ambicioso.
Fecha os olhos dois minutos e imagina-te daqui a alguns anos. Dez anos.
Vivo num lugar nublado. E mesmo que viaje a onda de névoa acompanha o meu percurso. Quero ouvir-me, fala mais alto, grita e diz-me que língua falas. Pelo menos dá-me uma pista. Escreve num papel o teu estado de alma e põe em P.S a tua profissão. Não entres nessa nuvem de poeira, não te feches nas linhas das minhas mãos, dá-te a conhecer, peço-te, não me tortures mais.
Preciso de um especialista, de um doutor, de anos de estudo e experiência.
Pode ter cabelos vermelhos e uma verruga na ponta do nariz, pode ser gordo e transparente, pode ver além do meu corpo. Podes ser tu, quem sabe.

chiu

Ele tocou-me. Olhou para mim com cores de mel, com águas de sal, com uma lista infindável de palavras caladas.
É uma pequena contracção de um músculo, um majestoso contorcer na cadeira, um elegante, profundo e distante silêncio.
O calar não é um bicho feio, nem um elefante pesado. Ele é um vento fugidio que voa entre brisas aconchegantes e sonoras.
O silêncio coloca-se ali, ao meu lado. Tento tocá-lo e ele escorrega-se-me pelos dedos de verniz vermelho. Vem Silêncio, quero-te aqui. Cala esta multidão enlouquecida de palavras vazias e conversas inúteis. Aproxima-te de mim e toca-me com os teus olhos. Desce à plebe, olha-me de perto e coloca-te no teu lugar. Pesas-me a consciência e afastas-me os sentidos. Fazes-me acelerar o paço, correr as escadas, desfiar o frio do congelador industrial.
Mas dizem que não podes ser distante. Sábias palavras.
Sai dessa tua poltrona preta, enfrenta o preconceito e a racionalidade. Aproxima-te, por favor.
Faz-te meu.

17 septiembre 2007

o pinguim

Já tinha errado uma vez e iria errar de novo. A prática faz a perfeição.
Mas os erros são dúbios.
Olhas, analisas, preocupas, controlas. Achas que consegues controlar.
Resistes, amassas, recusas.
Mais um passo e menos uma defesa.
Sou fronteira mascarada de limite. Quero ir até ao topo, quero fugir das minhas possibilidades, quero correr e escorregar na água gelada das nascentes.
Mas eu sou marco e sou divisa. Um dia ensinaram-me a esbate-la.
E nesse momento senti alguma coisa.
Um calafrio na ponta dos dedos, um tremor nos órgãos escondidos. Uma sensação. Era como se quisesse pensar e tudo estivesse branco. Não há montanhas, nem rios, nem frio e nem nascente. Há uma cor e o infinito.
E agora podes ser quem quiseres e dizer que a tangerina tem sabor a beijo. E podes beijar a fruta. Desalmadamente.
Mas eu já tinha errado uma vez. Eu e essa minha mania de ser perfeita.
Prevejo os erros a distâncias alucinantes. Sofro-os em quantidades industriais. Vivo-os e remexo-os. Contorço-me e sufoco-me
Mas um dia ensinaram-me a rabiscar.
E ofereceram-me uma caneta.

Quem me dera ser um pinguim.

16 septiembre 2007

hoje é fim de semana

Eu tentei apressar-me. A sério.
Mas há sempre tantas coisas a importunar o caminho. Os radares a detectar a velocidade, a gasolina que teima em faltar, o autocarro que demora sempre a vir. Às vezes parece que o casaco não combina com os sapatos ou que os brincos não vão bem com o colar.
Há dias em que acordo e tenho um olho maior que o outro, uma perna mais comprida, uma unha que se partiu.
E esses dias são inúteis. São dias de espera.
Parece que tudo anda mais devagar e é tão difícil tomar decisões. Turbilhões de ideias que salpicam todas as partes do corpo. São coloridas e retalhadas, saltam e escorregam pelas curvas e declínios de uma pele queimada.
Nesses dias os pensamentos brincam com a minha cabeça, fazem puzzels impossíveis, correm e escondem-se das chaves dos enigmas.
E não consigo andar.
Desculpa se me atrasei.
Mas parece que foi preciso uma eternidade para chegar aqui.

15 septiembre 2007

povoada

As pessoas têm barrigas e mãos e unhas sujas. Têm pelos pretos a saírem de lugares estranhos, têm dentes fungosos, olhares cabisbaixos, olheiras fundas, gorduras acumuladas.
As pessoas têm hálito e gases, e suor nas mãos e nas costas. As pessoas falam e gritam e gemem e arrotam.
Por um momento não tenho sentidos. Sou uma bolha abstraída do mundo, desprezada pelas sensações, esmagada pelas peles flácidas a precisar de um pouco de cera quente.
Tenho nojo.
Repugna-me a maquilhagem berrante, as roupas justas demais, as discussões de aperta-empurra.
Mas é aquele o momento, não posso deixar escapar a sorte da solidão. Voem pensamentos, venham e saiam e rodopiem pelo ar. Cambalhotem por cima de mim.
Sou eu e é o futuro. E de repente acabou a pressão, o nervoso e as mãos a tremer. Acabou o “para amanhã” o “não vou conseguir” o “não posso falhar”.
Foi só um segundo.
Um bom segundo. Havia gelados e sorrisos e amigos e praia e Marques Mendes e José Sócrates e passeios e mar e perfume e dietas e havia também uma pitada de passado, com um ventinho de leve a refrescar o dia.
Agora sou grande e não posso olhar para trás.
Até porque tenho um sovaco peludo encostado à minha bochecha. Seria um golpe arriscado.
Ultima estação. Veste, arranja, normaliza.
E se não sentires que pertences àquele mundo. Sorri.
É sempre uma boa opção.

09 septiembre 2007

coisas de bagagem

Enfia a tua casa numa maleta e foge com ela. Mas não te esqueças. Não podes avisar ninguém.
As coisas têm tendência a fugir, escorregar pelos cantos da mala, escapulir-se. Atenção: verificar sempre com muito tento se a bagagem não tem furos.
É difícil controlar o rumo das coisas. Que mania.
As coisas têm vida própria. Têm a sua própria bagagem, os seus próprios pés. Vão-se embora.
As coisas têm lágrimas nos olhos e têm maquilhagem borrada. Têm bilhetes de ida e às vezes datas de volta. Mas nem sempre.
Atenção: cozer os furos da mala com a máquina; fazer um ponto duplo e reforçado.
E nós somos também bagagens. Talvez apareça no google se pesquisarmos bem.
Pesquisar é uma arte.
Todos já fugimos alguma vez. Todos já abandonámos um ferido em combate. Todos já encontrámos um furinho, uma porta secreta, um túnel subterrâneo.
E todos já tiveram medo que a sua mala esvaziasse.
Mas para isso tenho uma dica: Colocar sempre um forro duplo. Ali ficam guardados para sempre aqueles que não queremos deixar fugir. Nunca.
Comigo funcionou.

04 septiembre 2007

comprimidos para dormir

Não há estações do ano e os dias mudam ao sabor das marés (e da capacidade de ver belo no interessante).
Interessantes as pessoas que saem, fogem, encorajam e arriscam. Aquelas que deixam para trás a vida e a rotatividade do mundo para procurarem um sonho. Um sonho comum.
Diria que são sábias as pessoas que concorrem, competem que adormecem e acordam em função de uma meta: ser o melhor.
A supremacia é um extremo impalpável que nem o sentido mais apurado pode descobrir. O oculado que do alto dos seus escassos centímetros ousa desafiar em língua estrangeira os políticos nacionais. O bem parecido que só conversa com olhos azuis e que achou a apuração fácil demais, o pai de família que não sabe interromper frases e sente-se estrangeiro na cidade grande, o sumo de frutas com problemas de fígado, a estrangeira que faz perguntas vocabulares durante as aulas.
A cadeira não é confortável, o computador não é visível, a importância não é relevante. Um nome escrito em caneta azul no fim da página, uma pergunta cliché para quebrar o gelo.
Sem amigos, sem referências.
E aqui sim existe vida.
Energia em cada palavra dita, ideais em cada tinta debotada no bloco, revoltas internas com cada regra imperceptível.
Competição de sorrisos. O valor da obra é a capacidade de triunfar não obstante os obstáculos de contentamento, nem deixar-se vencer pelo “boa noite” quando na verdade deveria ser “bom dia”.
Mais um risco vermelho, e mais um risco vencido. Poderia acordar a sorrir, eu sei. Poderia acordar com preguiça, eu sei. Poderia acordar na praia, no sol, no céu azul e na casa silenciosa. Eu sei.
As escolhas são copos de leite quente que nos vão ajudando a acalmar e a finalmente adormecer.
E a sonolência passou, venham os sonhos.

01 septiembre 2007

o melhor ângulo

Fecha os olhos, espreme-os, cola-os apertados e conta.
Contar foi o método mais eficiente que ela descobriu para afugentar a raiva. A resignação. E eles obedecem-na, emudecem mal o desfile de números parte do seu cérebro em direcção ao além. Os espasmos irrequietos, a vermelhidão das bochechas se esbatem e as orelhas diminuem.
Conta. Recita números, qual poema de Alexandre O’Neill. Também ele viveu em Constância. A terra dos poetas.
Afasta os pensamentos com resoluções aritméticas. Prova, justifica, aplica, desenvolve. Já não existem questões simples. O o quê morreu em combate entre o quarto e o quinto ano. Entre a mudança de caligrafia e a introdução à era paleolítica.
Ela vê-se ao espelho e a sua imagem está desfocada, qual narciso no rio. Fosse pela distância ou pelo brilho da ponta branca dos sapatos que reluziam ao sol. Sapatos mimados que vão morrendo, congelando e esbranquiçando as pontas. Aquele liquido salgado que verte dos olhos, parece ter um efeito decisivo no plástico falsificado dos sapatos. Ela pensou que um dia deveria patentear o seu líquido de pupilas verdes.
A falta de visão era uma vergonha que, no entanto, não a impedia de contemplar o seu monte de farrapos desfiados e fora de foco. É uma questão de procurar o melhor ângulo.
Bonita, ela.
Um, dois, três, quatro, cinco…
Bonita, ela.

30 agosto 2007

Um dia

Era uma vez um pacote de açúcar.
Ele tem uma forma estranha e um valor impagável, é procurado no mercado negro, nos aeroportos e esquadras da polícia. Mas eu escondi-o bem. Muito bem.
Foi uma viagem difícil, sempre a suspeitarem de mim, a cheirarem-me um odor adocicado. Perguntas, muitas perguntas. Interrogatórios infindáveis, lágrimas de angústia apertada.
Era impossível fintar o pensamento. O pacote aparecia escondido nos sonhos de cinco minutos, acordava com as costas a arder em dor e pensava que tudo acabaria bem. Mas a viagem parecia contra mim. Os filmes tinham mensagens subliminares escondidas em cada diálogo, o jornal escrevia o meu crime em todas as páginas, o meu corpo e a almofada cheiravam a noites mal dormidas de tráfico açucarado.
Ás vezes tinha medo que descobrissem o meu segredo. Sou uma rapariga correcta que não se pode dar ao luxo de fazer coisas irracionais. Contrabandear pacotes de açúcar é crime, dá prisão. Fui muito influenciável, eu sei. Ele chegou-me com os seus olhinhos pequeninos (tens de abri-los quando te ris), com o seu sorriso fechado, discurso manso e pegajoso. Foi impossível resistir. Pareceu tão espontâneo, tão puro e simples, mas lá no fundo foi uma proposta cruel, eu sei. Foi propositada. Querias fazer-me enveredar pela vida do dinheiro fácil, dos sentimentos exacerbados, dos impulsos incontroláveis.
E agora aqui estou, com o produto do contrabando.
Ainda está escondido.
Tenho de libertá-lo e não consigo.
Sou uma criminosa. Mas estou a pensar ficar com a mercadoria para mim. Pelo menos por mais algum tempo.

29 agosto 2007

Aqui...

Não há céu azul mas o cinzento faz trinta graus. As ruas são grandes, esburacadas, e cheias de camiões. É mais seguro atravessar no meio dos carros do que na passadeira.
Nunca se pode andar “distraída” e isso é tão óbvio que se nos distrairmos a culpa é nossa.
Não há ar condicionado mas não se pode andar de vidros abertos. A bolsa fica em casa e o dinheiro (indispensável) vai no bolso (que curiosamente não existe nas calças femininas).
Não se pode chamar a atenção (“vai ser difícil, não devias estar tão bronzeada”)
Toda a gente diz que deveria arranjar um namorado brasileiro para satisfazer a vontade da minha mãe e eu sei que se o fizer ela vai ter saudades dos portugueses.
Eu não quero arranjar namorados.
Sinto a falta daí e aí sentia tanta falta de fugir.
É pior do que aí mas mesmo assim vim para aqui com a ilusão de que aqui fosse melhor do que aí.
Os filmes são dobrados e eu adormeço a vê-los.
A vida começa as 7 da manhã.
Ando com um pacote de açúcar na mala.
Há família e há também problemas familiares.
Diz-se rotatória e não há prioridade. Os camiões podem andar em contra mão.
O motorista do autocarro conversa e olha para trás enquanto fala.
A culpa é sempre do outro (e normalmente do governo).
Há muitas notícias sobre os Estados Unidos e isso dá-me saudade.
Tenho um irmão mais novo e já não me lembrava o que era andar à porrada e jogar playstation.
Aqui sinto falta do teletransporte e prometo que na próxima semana o discurso será mais entusiasmante.

28 agosto 2007

Fico

Se não te fizer muita diferença, fica. Só mais um bocadinho.
É o tempo da vida mudar, do rumo se estabelecer, do mundo aprender a engatinhar.
Um bocadinho é muito menos do que as horas penosas em que os minutos se contavam em batidas decrescentes e em que a música soava a cada hora, ou assim.
Não é tão bonito como o jantar na mesa de madeira, o filme com sussurros de arrepios ou os pés a entrelaçarem em cócegas e risadas.
Não é tão imenso como um abraço cúmplice, um olhar apertado, um presente desentendido.
É menos embaraçoso do que dançar na rua, cantar na varanda, ouvir uma última vez as tuas mãos a conversar baixinho com as minhas.
Mas se não te fizer diferença, não te vás embora depois do café da manhã. Fica para o almoço. Prometo que te faço uma comida cheia de hidratos de carbono. E se não gostares do meu tempero levo-te ao restaurante. Pago eu, não te preocupes.
Mas fica só mais umas horas.
Pega-me ao colo para eu espernear, diz piadas para que eu faça quarenta e seis não-sorrisos forçados, dança e obriga-me a dançar.
E durante o almoço podemos conversar sobre coisas quotidianas. Sobre o filme de ontem, a noite de hoje, os dias e dias e meses e meses de resistir derretido.
E se não te fizer mesmo nenhuma mossa, fica para o café.
Vai deixando-te ficar e embalar pelos momentos de gargalhadas improvisadas e continua a ensinar-me a viver o presente, sem agenda, sem relógio, sem esquemas e tabelas.
Desculpa se não tenho nada para te dar em troca. Mas posso oferecer o jantar.
Isto é, se não te importares muito de ficar mais um pouco.

21 agosto 2007

Lady in Blue

O mar estava em reboliço. Vagas e crianças histéricas faziam uma sinfonia enjoada que derretia o sol escaldante. Eram ondas e ondas de libertação suprema.
Nadámos até ilhas desertas, almoçámos manjares dos Deuses, rimos e saltamos na velocidade inumana de plásticos flutuantes.
Partilhámos planos de futuro, fugimos dos olhares inquisidores, fizemos juras de amizade eterna.
A cabeça girou ao som da música indigente, o pé ficou descalço e sujou-se de areia nocturna. Caímos e levantá-mo-nos, corremos e desacelerámos, brincámos às celebridades e na cama, as lágrimas voltaram a cair.
Mas quando o dia nasce de novo, vem com ele o sorriso da união. Somos um só. Sempre fomos, desde o início.
Somos família de sangue fictício. Somos olhares e diversão garantida.
Somos gritos de encorajamento, somos viagens a quilómetros alucinantes, somos partidas e somos preguiça.
Para fugir do vendaval da praia, escondemo-nos em tostas de queijos e enchidos, em eleições americanas e estrelas cadentes. Porque as férias são assim. Há um pouco de tudo.

20 agosto 2007

Sem relógio

Chega de lamechice e textos de amor.
Chega de discursos apaixonados e corações a voarem pelo ar.
Mas hoje. Hoje é um dia especial.
Passou-se tudo num instante.
Chegaste de carro novo, como quem não quer a coisa. Gravaste músicas invulgares, contaste histórias desconhecidas. E foste tu, mais uma vez tu.
De cara para o mar, com o ranger da madeira.Com vozes e sussurros que ultrapassavam paredes, com a preguiça solarenga e o banho que queimava os poros. Contigo e sem relógio.
Dizes que não gostas de doces mas adoras chocolates. Dizes que não vives sem música e cantas sempre tão baixinho. Nunca queres beber mas não recusas desafios. Dizes que está sempre tudo bem e revelas-te tão encimado. Dizes que vai ser fácil mas os teus olhos não sabem mentir. Dizes que dizes pouco e, afinal, dizes sempre tanto.
As peles colam e partilham perfumes.
Os olhares contêm palavras.
Os toques são livros inteiros de ternura.
Os dias sucedem-se sem contador. São momentos e momentos e momentos.
Ás vezes converso com o destino.
Em tantos anos acabámos por nos tornar muito próximos.
Simpático, afável, ternurento, resolveu pôr-me à prova.
E eu também não recuso desafios.
Vamos até ao limite, até ao último segundo da vida terrestre, até ao limiar da dor humana.
Fugimos e fugiremos outra vez. Porque a nossa vida é assim: sem relógio.

06 agosto 2007

só uma magiazinha?

Não gosto de pessoas gordas. Nunca gostei. Elas ocupam espaço. Muito espaço. Demasiado espaço.
Espalhaste-te na minha vida e correste com a rotina. Refizeste as fronteiras e gritaste-me baixinho.
És assim. Vens, imprevisivelmente, com pantufas de algodão e sorrisos tímidos. Tocas o meu telefone e comentas as minhas manias.
Irritas-me.
Eu grito e esperneio, reclamo, faço rugas na cara, cultivo cabelos brancos de velhice antecipada. E respondes-me com ventinho e abraços, com a tua mão a amaciar a minha pele. E isso deixa-me ainda mais nervosa.
Mas agora fazes-me falta.
Há bocados do meu mundo por preencher. O teu espaço é vácuo e nem os feiticeiros desviam-me o pensamento.
Dói-me a cicatriz na testa e o raio borbulha-me a ardência. Eles lutam, gritam bruxarias estrangeiras e eu que só queria uma magiazinha barata que congelasse, por alguns dias, todos os relógios do mundo.

03 agosto 2007

é a revolução

Dizem que “queixar” é um mau verbo. Dizem por ai que isso de reclamar, protestar, contestar e resistir, é uma coisa reprovável.
Pois eu não concordo.
Sobem-me os tremores pelos caminhos dérmicos, arrepiam-se os meus pelos e enlagrimam-se os olhos. O calor apodera-se do meu bom senso e começo a achar que os poucos decibéis permitidos pela lei são inaudíveis.
Mexem-se-me as mãos e os pés e os olhos e os cabelos. Gesticulo e articulo um discurso corrido e apressado de protestos e reivindicações.
Quero o mundo como eu quero.
Não sou rebelde nem contestatária. Sou eu.
E quero justiça.
Quero justiça pela comida que levou horas a ser preparada e vem mal servida no prato. Quero justiça pelos sorrisos que deveriam sair das bocas dos empregados.
Quero justiça pelas moedas que ficam a mais nos caixas.
Quero justiça pelas palavras amáveis que queriam sair e que são substituídas por discursos sexistas.
Quero justiça pelo direito ao silêncio que é quebrado pelo grito hormonal e sedento de trabalhadores empoeirados.
Quero justiça pela disponibilidade da função-publica-das-nove-as-cinco-e-às-quinze-para-as-cinco-já-está-tudo-fechado.
Quero justiça pela quantidade de árvores que poderia ser poupada nas burocracias inúteis.
E agora dizem-me para parar de me queixar. E eu não quero.
E queixo-me por causa disso.

02 agosto 2007

melga

Tenho zumbidos no quarto. Há barulhos nos meus ouvidos que não me deixam dormir, que não me deixam estar acordada. Escondo-me por baixo do cobertor e enrolo-me com os cabelos na almofada perfumada. E o zumbido continua.
Quero abrir os olhos e triturar o som com as pupilas, mas as pestanas estão gosmentas e têm um liquido solidificado que não as deixa abrir.
Preciso de um pesticida forte, ou de um spray que me desatormente o sono. Quero voar nos lençóis cor-de-rosas e dormir com sorrisos e suspiros
Mas o rumor continua. Esbato-me e contorço-me num turbilhão de pensamentos maus. Batifes, Malandros, Brejeiros. Voltem os sonhos bons. Vão-se embora insectos detestáveis.

31 julio 2007

post-it

Sempre adorei papéis. Papéis, canetas, blocos, cadernos.
Quando era pequena fazia colecção de papéis de carta. E que bela colecção que eu tinha. Havia alguns que eram muito valiosos e ficavam a meio do dossier (para não se estragarem) e eu colocava-os numa mica especial (que ia substituindo de tempos a tempos. Papéis de carta valiosos não podem ficar expostos em micas riscadas).
Eram impagáveis os meus papéis de carta. E tanta inveja que as outras crianças tinham deles.
Eu gostava de os ver e cheirar (porque muitos deles tinham perfume) e, acima de tudo, de os exibir.
Mas mania dos papais de carta foi passando e fui começando a coleccionar outros tipos de papéis. Papéis secretos, não-exibíveis.
Eram cartas e recordações, eram bilhetes e histórias.
Antigamente tinha uma caixa. Era de madeira e tinha o meu nome gravado por cima. Comecei a guardar ali as minhas recordações papelísticas. Mas a caixa encheu rápido demais e pus-me a pensar: Talvez isso de guardar papéis numa caixa não seja boa ideia. A caixa era como uma recordação gigante e proibida. Uma recordação triste-alegre que trazia lágrimas e sorrisos, arrepios e suspiros. Continha palavras proibidas e segredos selados. Desenhos rabiscados e declarações apaixonadas. Um buraquinho intenso demais para um comum mortal. Resolvi abandonar o dito objecto numa gaveta e pus-lhe um aviso em cima com a frase “material potencialmente perigoso”.
Espalhei os meus segredos pela casa, pelas roupas, carteiras e malas. Para, quem sabe, serem encontrados um dia.
Guardei cada segredo num canto refundido, cada recordação num pedacinho de espaço invisível. Talvez um dia os volte a encontrar, ou talvez as recordações fiquem para sempre escondidas no labirinto dos segredos e das memórias. Não sei.
Tudo isto porque ontem ofereceram-me um post-it. E agora não sei onde o colocar. (ou esconder).

30 julio 2007

marginalmente romântica

Sou marginal. Marginal e vadia na rua das mentiras e dos enganos.
Tenho uma pele que arrepia e estremece a cada grão de areia que se cola. A praia tem pouca areia, é um facto. As famílias comem-na lambuzam-na, escorregam-na para o mar revolto. A onda vem e vai num ritmo congelante de circulação parada. E o sol frita.
Existem certos rituais que são imagem fotográfica. Croquetes de areia e mãos que abrem e fecham num deslumbre preocupante pela fisionomia humana.
Sou um cigano itinerante, um velho bigode alongado de saltos e nuvens de perfume. Perfumes nostálgicos e molhados. De línguas e lágrimas que escorregam em segredo pela pele queimada. Mas está frio. Muito frio. O ambiente começar a tornar-se inóspito. Quando o perfume se vai, qual nómada atrevido, vou-me com ele em viagens de violinos e acordeões. Há um fantasma que me segue. Um fantasma secreto que me faz cócegas pelo corpo quando passa por mim como uma brisa daquele mar remexido de sábado à tarde.
Às vezes o fantasma passa por mim, faz-me rir com caretas e histórias incontáveis. E eu penso: O romantismo já não está na moda.

25 julio 2007

Pudim

Estou a enterrar-me na areia movediça da ampulheta. Os grãos caem como pedras que ecoam na minha cabeça e cantam uma música de adeus.
Mas tenho a pele colada a este lugar. A estes cheiros a esta rotina de papel e suspiros.
Rezar para que o tempo passe depressa e rogar para que o tempo nunca passe. Deus fica confuso e resolve deixar-me abandonada na selva de leopardos vaidosos.
Não quero ir, não quero ficar.
Fui ao supermercado e comprei um saco cheio de pudins. Pus um pouco de ketchup por cima e comi. Comi até não poder mais.
Achei que talvez um bocado de conservante pudesse ajudar. Quem sabe.

23 julio 2007

músculos vadios

Os olhos insistem em fechar. O cérebro concentra-se neste movimento paralisado de cessar. Não posso piscar os olhos porque eles gritam de sono, também não posso pensar porque se pensar os olhos adormecem e sonham em cenários paradisíacos de sol e lua minguante.
O dia vai passando com horas contadas ao minuto e o fazer nada vai esmagando os momentos de alegria.
E o tempo não passa. Os músculos ardem e rasgam a pele. Músculos estranhos, estes. Não os conhecia mas não me parecem muito afáveis. Apresentam-se de rojão, sem sorrisos e sem formalidades. Gritam a sua presença e trazem cartazes de dias coloridos. O pescoço também dói da areia dura de cestas ao sol. São músculos nómadas e vadios que vêm e vão como as ondas de calor.
Mas agora a dor já não define o sentimento. São pontadas fortes de férias encantadas, são pensamentos magoados que desviam o humor.
Acho que preciso de uma massagem.

22 julio 2007

e

Às vezes as palavras não chegam.
Preciso de um dicionário, de um génio linguístico que se instale na minha cabeça e me que articule os maxilares em forma de palavra.
São momentos.
O abraço esmaga os ossos e repara-os num beijo apertado de respiração prolongada.
E o ar percorre o corpo num arrepio triplo de sussurros e toques. E os dedos entrelaçam-se numa dança clássica de valsa para crianças, que rodopia o ouvido, como cotonete molhado. E as memórias de adolescentes surgem com confissões e segredos embutidos em compartimentos reservados. E as reservas de energia revelam-se, com saltinhos sorridentes e espreguiçares matinais. E os sorrisos são abertos e têm som de felicidade extrema. E o limite da plenitude é ultrapassado e arrasa com as barreiras da racionalidade. E a razão desaparece, e com ela o mundo. E tudo à nossa volta se extingue.
Isto é como um jogo de ligações. As palavras trazem recordações a cada piscar de olhos e as imagens invadem a mente, num turbilhão frenético de gritos e suor. O suor escorre e molha o corpo como água derramada de perfume feminino. A água seca na toalha proibida de uma praia fictícia qualquer. As mentiras arrastam-se e criam cenários idílicos para onde nos transportamos com a facilidade de quem foge da dieta. As calorias comem as calças e transformam-se em monstros açucarados de ruminantes loucos.
Mas a pálpebra descola e a luz fere o olho. Preciso de um soporífero. Deixem-me voltar a sonhar.

20 julio 2007

coro de multidão

Zumbidos de sons luminosos.
O suor escorria ao som de guitarras vibrantes e as pessoas deliravam com mãos que abanavam em ondas de calor e êxtase. A voz falhava em gritos de entusiasmo dilacerado e o chão tremia e saltava em minutos onde o lugar dos pés era a vários centímetros do chão.
Corpos que roçavam na homogeneidade dos gostos e no uníssono de vozes em coro que se perdiam na multidão.
Perdem-se as personalidades e os sapatos em massas populacionais ao rubro em busca de uma existência com sentido.
Quer-se saber e mostrar que a música é o espelho, a alma, o cobertor e a pista de dança dos nossos dias. E numa narrativa-surpresa de notas ensaiadas atinge-se um deslumbramento colectivo e o que sobra são restos de pessoas.
Mares de suor que jorram dos poros dilatados das músicas de colunas gigantes, e no fim um momento de êxtase febril. Uma respiração. Um silêncio. Uma recordação.

15 julio 2007

É Verão

O sol arde e queima as gotas de suor dos poros bronzeados. É verão.
E no verão apetece dançar no meio da rua, saltar muros e vedações, espreguiçar um sono que não acaba.
Vou fugir daqui na estrada de terra que suja o carro e salpica os pés de alcatrão.
É tão ténue a linha entre a plenitude e a tortura.
A felicidade dói fraquinho, como pingos de água que caem espaçadamente. Já chega de sofrer.
A alegria aperta a mão com força num olhar confidente, gargalha de comentário inofensivos e arrepia a pele em músicas que encaixam na história.
A areia entra nos cabelos com cambalhotas de ondas inesperadas. O sol arde e solidifica o momento numa fotografia de céu azul.
Não há óculos de sol, e os jogos de cartas têm uma nova forma.
O Verão chegou, e com ele a plenitude perfeita da cumplicidade trabalhada. Aquela que sempre existiu.
Amanheceu Inverno e, de repente, a nuvem preta trouxe consigo recordações de bolachas de chocolate. Mas comi uma fruta. Porque é verão e quando o sol bate não há espaço para calorias. (nem recordações)

14 julio 2007

vicio do combate

É perigoso, tem arestas afiadas. Enfia na pela e faz sangue. Vai dormir que isso passa amanhã.
As pontadas latejam e contagiam o corpo estendido no chão.
Ali, deitada na alcatifa escaldada, ensanguentada de pensamentos de olhares.
E estamos a lutar.
A luta vai acabar um dia. Está condenada e todos sabemos disso. Mas vale a pena.
Vale a pena batermo-nos por alguns dias de sorrisos derretidos. Por algumas palavras inesperadas em dias de surpresa.
Mas à nossa volta, espalharam calendários de dias riscados. Atirem-me vidros para os olhos. Firam-me as pupilas com luz branca. Não quero ver nada.
E cega, de braços e pernas partidas, quero continuar a lutar. Quero mais e mais.
Chega de rodeios. Acabou.
Sempre que olharmos para trás vamos sorrir e gargalhar de bons momentos. Estamos mais fortes e dependentes desse vício do combate. E quem luta não se separa, tem laços de sangue partilhado entre feridas abertas e ardentes. Voltamos à nossa vida corriqueira.
Mas continuo a ser um alvo fácil e ensanguentado à espera do meu próximo adversário.
Quem sabe serás tu, outra vez.

09 julio 2007

carne-balão

E se estivermos todos a viver uma farsa?
Às vezes acho que a vida não passa de uma simulação decadente de seres errantes e iludidos. Voamos e chapinhamos nas lagoas esquecidas das florestas densas. Saltamos e cantarolamos pelas ruelas e avenidas, inchados por uma felicidade aparente.
Mas as agulhas são seres maléficos. Pequenas e afiadas, costuram e furam a uma velocidade alucinante.
A dor aguçada pica lentamente e vai penetrando na nossa carne-balão. Destrói dias e dias de oxigénio desperdiçado, aborrece as plantas que asfixiam a pureza da fotossíntese.
E o balão explode. Moléculas saltitantes nadam pelo ar poluído de chuvas ácidas. A agulha cai e vai perfurar a próxima vítima.
O balão é de hélio. A voz vai gritar.

08 julio 2007

o mundo gira

O tempo é uma máquina feroz que luta contra as leis da natureza. Mas tirei o relógio porque o tic-tac me dizia que o mundo podia acabar. Um dia.
De pulso nu, lanço-me para aventuras novas. Retempero as cores da paisagem, numa fotografia perfeita de meninas-modelo.
A porta abriu. Um passo tremido de insegurança inquieta.
Expectativas, expectativas.
Corpos que dançam músicas quaisquer, dedos que se entrelaçam e escorregam. Cordas desafinadas por hinos de sabedoria. Um sentimento que explode, qual lava crepitante, e sai pelos poros da pele em forma de fumo ardente.
Faz calor e a luz ilumina as frestas da janela. Revela vultos de segredos e declarações, de gelados e comida fria espalhada pelo prato.
E num abraço que esmaga, contorce e arrepia, tudo muda.
Vaipes de surrealismo e conversas de olhares cegos e confidentes.
Os dedos arrepiam as costas e manejam os lápis em desenhos de infância.
Agora posso conquistar o mundo.
Conheço os seus trejeitos e as suas manias. Sei que um dia ele vai girar.
O chão vai virar tecto e banda sonora vai começar com a frase “o tempo é uma máquina feroz”.

06 julio 2007

6ºf

A felicidade absorve o nervoso de barulhinhos na barriga. Mas uma palavra-chave faz com que o mundo congele e, de repente, o ar torna-se denso e deixo de sentir as mãos molhadas e escorregadias. Chamem a ambulância. Preciso ser internada.
Trânsito, caos, violência.
Tenho medo. Outra vez.
Cai o escudo e sinto-me nua à frente do mundo. Com os pelos arrepiados e os cabelos embaraçados em nós eternos. Sou um molho de rosa a dois euros na feira, um golo da água quente de ontem. Sou frágil e vou partir. Sinto-o.
A perfeição salta à vista nesta terra de gente vulgar com flashes brilhantes e fosforescentes. Tudo é colorido à minha volta. Normal: os olhos vêem cores.
Mas hoje as coisas parecem diferentes. Não estou louca, estão mesmo a tocar canções de júbilo na minha cabeça.
E tudo começa outra vez.
Os sonhos atribulados durante as noites de calor transpiraste, as previsões mentais de dias perfeitos de melancolia abafada. A lágrima engolida a seco no momento em que os deuses, os carros e os mendigos parecem estar contra mim.
A sensação vai passar, eu sei.
E vai ser rápido, porque afinal, hoje é sexta-feira.

03 julio 2007

Atenção, isto é um erro cientifico

A lua já está cheia há tanto tempo.
Dias e dias de luar baixinho iluminando as mentiras brancas de noites fugidias.
Quero negar e dizer que sou feita de cimento. Que nada me pode afectar, que sou rocha calcada no mar gelado, absorvente, congelante.
Mas não consigo. Os meus olhos dizem que sim, e o meu corpo pendura-se no teu pescoço num instinto reflexivo de sentimentos cozinhados.
Isto não estava nos planos. É um erro científico.
Voltemos às planilhas, aos gráficos, aos exames e aos cálculos matemáticos.
Não gosto de sentimentos. Essa deformação de enzimas a que chamam afecto.
Vou dançar no semáforo vermelho, enquanto o mundo entoa uma melodia qualquer. Não interessa a música, nem o tom, nem a tablatura.
Vou roçar o meu corpo em alcatifas queimadas e morder, morder, morder. Fazer dor até sair sangue e poder usá-lo para fazer análises.
Diagnostiquem-me. (Vou ser famosa e aparecer nos jornais)
Vivo um erro científico.

29 junio 2007

Para o Pedro:

Queixam-se por aí das metáforas.
Hoje acordei e pensei que a vida não pode ser “uma chávena de café com açúcar a boiar no topo”. A vida é vida. E por aqui concluo a frase.
Hoje não há metáforas. Não há um cobertor cor-de-rosa debaixo do qual me possa esconder.
E agora digo, assim, num tom directo e objectivo, que estou feliz.
(Só porque não há metáforas não significa que devo comentar a situação do mundo, ou criticar os candidatos à câmara de Lisboa.)
Falemos de sentimentos.
Não vou tentar explicar a felicidade, nem dar razões profundas e metafísicas para tal estado de alma.
Acordei, com a cara amassada de uma noite de dez horas de sono, e sorri.
Foi assim, simples e nada poético.
Tal com é a vida.
Mas sorrir é felicidade?
Andar de transportes públicos é sempre uma inspiração. Tantas pessoas a sorrir.
Sorrisos quando se pede “com licença”, “desculpe”, ou, sem nenhuma palavra, quando uma criança se senta à nossa frente e começa a fazer traquinices.
Há sorrisos enquanto se lê a secção das fofocas dos jornais gratuitos, ou quando se consegue, finalmente, acabar o sudoku.
Sorrisos, sorrisos e sorrisos.
Eu sorrio e irrito-me naquela viagem que me encanta e repele.
Os senhores, de nacionalidade incerta, tocam músicas que me lembram momentos de felicidade utópica. Os idosos reclamam da falta de cortesia dos jovens e “se já temos os nossos problemas, porque é que agora temos de estar a levar com os dos outros?”.
E eu sorrio e irrito-me.
Devia fazer um inquérito e andar com a minha nova (hehe) postura jornalística a perguntar às pessoas dos transportes públicos se são ou não felizes. Mas eu não confio em inquéritos.
Então resta-me pensar.
E talvez um dia encontrar uma metáfora perfeita para a felicidade.
Mas hoje não.
Porque hoje não há metáforas. Nem comparações.

27 junio 2007

vento pequenino

As decisões são difíceis e morosas, são peixes na água que teimam em não se afogar.
E o momento de espera é um tortura. Olhos que não podem piscar, pingos de água que massacram os ouvidos.
Mas finalmente a decisão acontece.
E em alguns segundos a nossa vida muda.
Acabaram-se as dúvidas.
Agora é fácil fazer um telefonema. Dizer, entre gargalhadas, que está tudo bem. E está.
É estranho ver como acabaram as preocupações, as crises de meia-noite, as dúvidas sentimentais que atormentaram os sonhos de princesa.
Já não te peço para ires embora de mim.
Quero que fiques como memória de bons tempos passados. Como recordação de infância acompanhada de um sorriso nostálgico. Foi só um telefonema.

Fica.
Com o teu jeitinho esquisito de personalidade múltipla. As indecisões e os passeios de vento pequenino. Agora já não faz sentido pensar, porque está tudo dito.
As ruínas serão sempre nossas e as músicas, de macacos saltitantes em viagens às escondidas, são a banda sonora de uma história tímida.
E não há mais ninguém.
Os alguéns explodiram em momentos de revelação absoluta. Ficaram as saladas e a comida que se deixa no prato. A superioridade grátis de labirintos coloridos.
E hoje apetecia-me fugir. Com a Beatriz e o Diogo.

25 junio 2007

lições

Diz-se por aí que de todas a experiências se devem saber tirar lições. Lições de vida. Lições de sabedoria.
Eu queria ser assim.
Saber dizer que tudo valeu a pena e que no final tornei-me uma pessoa melhor, mais sábia e experiente.
Mas na verdade não.
Passo imperturbável pelo mundo da tristeza e dos dias fechados de penumbra e tortura latejante.
Procuro uma rede de segurança que me salve da queda abrupta.
E lá está ela. Serena e tranquila. À espera.
Sempre admirei essa capacidade nos seres.
Esperar pelo momento certo. Ficar ali, parado e inerte, omitindo sentimentos. À escuta.
Olhos abertos e ouvidos atentos. Sentidos que se misturam num hirto momento de prazer.
E depois tudo se estraga.
Derrama-se o trabalho de uma vida, no chão impecável de esfregona nova.
O vidro quebra e restam cacos.
Caos inútil de momentos quebrados e movediços.
Sou memória. Memória ignóbil e inexperiente.

22 junio 2007

olhos de azeitona

Quero beijos rápidos e barulhentos daqueles que dão piquinhos na pele e furam o casaco preto. Quero abraços e olhares de deslumbre.
Mãos dadas a passear ali, naquele caminho de nenhum lugar, na rua esburacada que mais parece saída de um conto-de-fadas.
O céu mistura-se com o cor-de-rosa do vento e dança nas nuvens voadoras salpicadas de estrelas.
E no meio desta paisagem ilidica de ambiente campestre, pelo amor suave e terno da relva molhada nos pés tatuados, ele surge.
Afaga os cabelos e olha com pupilas carinhosas enquanto acaricia as mãos.
São momentos fotográficos de uma paixão passada em sentimentos cúmplice de olhos de azeitona.
A mesa derrete de inveja daquela felicidade latente que transborda da espuma do capuccino acabado de chegar.
Irremediavelmente sonhadora fecho os olhos e procuro uma brisa de vento que me diga ao ouvido, “tudo isto é realidade”.

20 junio 2007

dor

Às vezes dói-me a barriga e apetece-me um chá quentinho.
Um chá que escalde os órgãos abraçando-os como uma manta acolchoada que lhes oferece uma vida leve e ditosa. Os defeitos são saltinhos transparentes e as falhas um charme escondido na ilha do tesouro.
Quando a barriga dói fecho os olhos com muita força e rogo para que continuem a uma velocidade alucinante.
E, como quem não quer a coisa, às vezes consigo teletransportar-me para um mundo alternativo onde não existem incompatibilidades, mas apenas uma vida divertida de passeios e tardes no jardim.
E tudo é possível.
A barriga aperta, contorce-se, dá lágrimas nos olhos e pede para parar.
Mas já se foi o tempo em que o masoquismo era condenável. Agora a automutilação é uma prática social que permite aos jovens atingir o nirvana e rirem-se das vidas alheias.
Sou jovem (e odeio essa palavra).
Insisto e estimulo a dor, espicaçando-a ao limite.
Já quase não consigo pensar. A cabeça gira e percorre um mundo surreal com passos inaudíveis rumo ao perigo iminente.
Estou a senti-lo.
A dor latejante avisa-me que estou à beira de um precipício vertiginoso.
Vou cair.

19 junio 2007

me voy

Voltar e pousar na frágil pétala de rosa que se desfaz com a ponta dos pés.
Quero ser borboleta e planar nos rios, voar por entre montanhas de árvores outrora descascadas e que agora dão frutos coloridos. Crescer e aprender que tudo se vive uma vez.
E uma vez só.
Reviver é uma utopia inútil que nos acalenta as noites de dúvida e insucesso.
Não há viver de novo nem voltar atrás no tempo. O mundo continua a girar com dias e noites sucessivas de gargalhadas e dores de barriga.
Mas fui. O que era meu perdeu-se no mar das memórias apagadas de imperialismo num reinado de ninguém
E quem foi não volta a pisar as terras sagradas. Não volta a misturar-se com a poeira encabelada do chão pestilento e pegajoso que cola na palma dos pés preta e suada de tanto andar.
Me voy de vez desta terra encantada onde o sorriso é um flash fotográfico eterno que dói nas covinhas de tanto esforçar.
Agora já não há lágrimas para relembrar, nem perfeição para reinventar. Gravei o meu nome numa parede azul e num espelho barato. Resta-me esperar que um dia o ciclo se feche numa requintada sinfonia de experiências alternativas.
Esperar que um dia alguém queira viver a minha realidade. Assim como eu vivi a deles.
E gostei.

11 junio 2007

fita-cola?

És um monstro.
Um mostro calado e desgastado na revisão da minha vida.
Escondes-te por trás das árvores dos centros urbanos, dentro da caixa das bolachas e no fio do telefone ao pé da cama.
És resíduo constante, qual fóssil rochoso instalado no cerne da alma.
Falas e gesticulas com a naturalidade da vida-fantasia dos tempos já esbatidos pelo contínuo trabalhar do relógio.
Quero-te fora de mim.
Sei que o tema é recorrente e que a minha triste melancolia azeda já faz alergia aos ouvidos alheios.
É uma força que me empurra para o limbo pueril da angústia. E cada vez que veto o meu pensamento de desviar-se na deformidade das tuas promessas de felicidade, penso em ti.
Penso em não pensar-te. Penso em odiar-te pelas entranhas. E lembro-me que até já gostei de ti do avesso.
E quando surges no mais subconsciente da mente adormecida e dopada por gases pesticidas que inibem o raciocinar, apetece-me chorar e pôr-te no lixo (no recipiente azul da reciclagem). És um papel rasgado. Mas às vezes a fita-cola parece tão aliciante.
Não queria colar-te nem estragar-te nem elevar-te num pedestal cristalino. Queria que fosses apenas uma alma ambulante pelo meu rol de memórias que precisa de queijo e exercícios no ginásio.
Queria-te normal e esbatido por novas e estimulantes experiências.
Mas depois apareces-me e dizes que é possível fazer REW.

09 junio 2007

não tem mal

Há dias de sol e dias de chuva. Há dias de certezas e dias de dúvidas.
Há dias em que sorrimos no abraço acolchoado de um perfume familiar. Há dias em que apetece usar uma voz que se dissolve no vento e falar numa linguagem de ditongos monossilábicos.
Voar entre letras de músicas cantadas em dois tons e passear por entre castelos abandonados de fantasias de futuro.
Vou correr pelo campo com os sapatos desapertados (por causa dos calções) e deitar-me por cima da das pedras que fazem doer as costas.
Nesses dias não tem mal ser lamechas nem fazer planos utópicos de viagens à lua ou, quem sabe à Tailândia. Não tem mal gozar com os vizinhos nem contar segredos proibidos.E como os dias de certeza são tão raros. Nesses dias até podemos comer um pudim de leite condensado e pensar. Não tem mal

05 junio 2007

matemáticas

A vida são testes de matemática feitos sem calculadora.
Há muito que o ratinho deixou de nos ajudar a resolver problemas existenciais e que o zero deixou de ser apenas um conceito vazio.
A vida não é fácil, todos sabem disso.
São chegadas e partidas, com lágrimas e emoções.
São dramas mexicanos contados debaixo de um cobertor macio.
As pessoas vêm, abanam-nos a rotina, instalam-se nos nossos recantos, integram a nossa família e depois vão-se. Deixam rastos de migalhas de chocolates, deixam caras e caretas.
E ficam as fotografias eternizando os momentos dignos de flashes. Fica a solidão. Outra vez.
Não quero mais visitas, nem sorrisos, nem perfeição efémera.
Agora é tudo ou nada, digo eu.
Dêem-me uma calculadora, e façam-me racional. Formatem-me a cabeça e digam-me que a felicidade fugaz não é uma droga viciante e perturbadoramente degradante e degenerativa.
Por favor.

04 junio 2007

impecável

As viagens são parêntesis saltitantes em festas de histeria alegre. São passeios ao vento em tardes de verão à beira rio.
As viagens são toques escondidos e fugas de covinhas cúmplices e passageiras.
Os olhares circulam nos corredores com pantufas invisíveis e insonoras que deslizam no chão impecável do quarto cuidadosamente trancado.
O segredo é um menino maroto que quer voar e pousar num ombro proibido. Ele insiste em instalar-se nos carros, nos colchões, nos copos e nos elevadores. Ele ri-se e goza connosco do alto da sua ironia sapiente.
Vamos fugir e viajar num segredo sem fim de línguas aldrabadas e noites de bebidas coloridas. Vamos caminhar até não termos mais sapatos e a banda sonora da nossa vida resumir-se a momentos.
Arrepios de solidão futura, lágrimas congeladas no profundo da alma.
No presente, apenas uma certeza.
A minha casa vai ter três assoalhadas e vista para o mar.
E todos os dias ao jantar vou beber água com momentos poliglotas e inesquecíveis.
E nunca irei desidratar.
Fecha parêntesis.

30 mayo 2007

nervoso miudinho

Andar descalça em ruas íngremes para não chapinhar as sandálias na calçada escorregadia. Escadas e mais escadas, corredores de cansaço exaustivo. E no fim do mundo, um sorriso.
Um sorriso de tardes de fotografias animadas, de viagens no chão poeirento de transportes em greve geral.
Uma paralisia turística contornada por passeios de carro em dias nublados. Uma vontade imensa de que tudo seja perfeito. De que cada desenho matinal, cada cabelo despenteado, cada história e cada piada, encaixe sublimemente num quadro de memórias futuras de realização suprema.
Quero fazer disto a minha vida.
Quero viver com as pernas doridas e a palma do pé a gritar de dor. Quero que as minhas pestanas dobrem de sono e que o ranger das minhas costas grite de desespero.
Levem o meu corpo e transportem-no para uma realidade alternativa onde a vida é preenchida por nervosos miudinhos na barriga e sorrisos rasgados de felicidade extasiada.
Vou comer os momentos, mastigá-los, engoli-los, e quem sabe ruminá-los, enquanto ainda é tempo.
Que imagem tão bonita.

29 mayo 2007

poesia urbano-decadente

A minha vida é uma poesia urbano-decadente de dramas sequenciais e felicidade exaustiva. Sorrisos de alerta em espelhos do carro, toques de intimidade de vidas outrora divididas.
São olhares e carícias de amores proibidos. São problemas esquecidos ao sabor de bebidas azedas tomadas com gelo e palhinhas coloridas. São noites de decadência amarela adornadas com línguas díspares e confusas.
São história e mais histórias.
A minha vida é um extase deleal de mentiras e ilusões. É um caminhar contente de pulinhos e abraços. Um nervoso miudinho de portas que se abrem com malas pequeninas.
E heis que eles aparecem e refrecam a minha memória com chocolates esquecidos e bebidas alegres. E a minha vida transforma-se. E a minha vida são eles.
São passeios e sagas turisticas, são museus e manhãs de remelas e pijama.
Quero mudar de língua, quero viver para sempre neste labirinto de flashs coloridos e transportes urbanos em greve. Quero embebedar-me nesta poesia de poluição e buzinas inaudíveis, neste emaranhado de fumos e gordura que escorre lentamente pelo amburguer de chocolate.
E, afinal, a felicidade existe e está escondida em potes de nutella e garrafas de sumo de limão.

25 mayo 2007

No meu tempo...

Dias de chuva de cabelos pingados. Dias de poça e salpicos constantes.
Dias molhados.
Chove por cima da minha cabeça.
A água diz que o calor cessou. Que tudo se tornou frio, cinzento.
Quando é que o dia perdeu essa capacidade de brilhar?
Antigamente (no meu tempo...) o sol espreitava pela minha janela matinal e dizia-me bom dia com abraços e beijinhos. Nessa altura, o despertar era feito com raios de carícias e sussurros encorajadores.
Hoje chove.
As gotas gritam um barulho ensurdecedor. Proferem palavras malditas de ódio e descrença. As pessoas fogem, comentam, encolhem-se. Tremem as mandíbulas e piscam freneticamente os olhos. A água, suja de poluição, desce pela quente linha das costas e arrepia a espinha transformando os pelos em cubinhos de gelo invisíveis.
Mas existem pessoas que nunca se molham. As nuvens fogem daqueles que não se amedrontam.
Esperam a lentidão do semáforo, a cortesia dos carros que espirram poças, a gentileza de uma pessoa que ofereça um guarda-chuva.
Chegam-nos com cabelos molhados, um sorriso na cara de quem acabou de sair do banho. Saem de casa e, apesar da chuva, decidem andar a pé. Que fenómeno tão peculiar.
Intrigam-me as pessoas sorridentes de lábios molhados. O chapinhar nos charcos, o escorregar nas escadas. A roupa aguada fica transparente e o nariz vermelho dá uma certa sensualidade. O romantismo passeia-se pelo ar e chovem pedidos de casamento.
Eu já fui assim (no meu tempo...)

22 mayo 2007

marasmo azul de pensamentos vazios

Às vezes queria saber não pensar.
Quero congelar o cérebro com sprays de azoto (que deixam cicatrizes eternas), fazer um botox nos músculos da minha cabeça.
Acho que penso demais.
Se o meu cérebro fosse um marasmo azul de pensamentos vazios, poderia viver a sorrir e a cantarolar na rua ao som dos assobios do vento.
Que cessem as vozes histéricas que sussurram ideias e reprovações. Que exigem excelência e brilhantismo.
Quero ser comum.
Caminhar na rua e sentir-me abraçada por essa massa uniforme e pegajosa de pessoas corriqueiramente vulgares e desprezivelmente iguais. Ponham-me uma coleira, domestiquem-me como um cão.
Um fio de baba escorrega-me pelo canto da boca, uma apatia revela-se no profundo dos meus olhos e um sorriso brota dos meus dentes desleixadamente espalhados pela gengiva inflamada.
Quero pôr mensagens de amor na internet e receber flores com corações, quero dizer bebé e fofuxo, quero ser pirosa. Muito pirosa.
Vou passar a ir ao futebol e a usar brincos dourados. Chegou, decididamente, a altura de intercalar o meu discurso gramaticalmente ofensivo com asneiras de afirmação juvenil.
Chega de filtros e de julgamentos prévios. Serei o que a moda ditar, junto com as botas de pêlo e os jornais gratuitos.
Tudo isto porque não quero mais pensar.
De que vale defender a diferença num mundo de clones televisivos? De que vale fomentar o raciocínio numa sociedade onde ou és tudo ou és nada? De que vale seguir o caminho poeirento quando se conhece a existência dos lagos, da nuvem e do sol?
Quero participar num concurso televisivo e dar um beijo ao Henrique Mendes.
Mas, por favor, não me ponham a trabalhar num suplemento cultural.

20 mayo 2007

cc

A vida é uma festa de momentos inesperados. São gargalhadas e sorrisos fortuitos, são confetes e serpentinas jogadas ao acaso no ar de uma noite de ventania.
Há coisas que não podemos controlar.
Cumplicidades de auditórios super-lotados, piadas internas de um círculo demasiadamente fechado para ser penetrável. Conversas de anos que já se foram, de uma inocência já perdida, de um entusiasmo gasto pelo dia-a-dia.
Mas naquela noite, a tão esperada, criticada, sonhada, esquecida, falada noite, tudo foi diferente.
As pessoas eram bonitas e brilhavam com cores cintilantes. A conversa fluía num curso de ping-pong de sentimos e copos com fruta. As pessoas não eram os estranhos de outrora, os desconhecidos das pautas dos testes.
Não queria chorar, nem sentir saudades. Não queria dizer que foi bom e que nem detestei assim tanto. Não queria admitir que…
Mas a verdade é que os nomes saltaram das bocas das pessoas e materializaram-se em caras e recordações. E em apenas algumas horas, tive a certeza de que a vida é feita de momentos.
Fugazes os momentos. Voam e rodopiam no carrossel dos sentimentos.
Não deixei de abominar o mundo, nem de fazer caretas aos professores, mas a partir de agora, sempre que o fizer, lá no fundo vai haver algo que me diz “não sejas rabujenta”.

19 mayo 2007

sapatos

Somos mapas coloridos de escolhas e decisões. Somos planilhas organizativas de prós e contras balanceados, somos documentos electrónicos complexamente dissecados.
Somos caminhos.
A vida é uma marcha lenta de momentos perdidos no tempo. E a cada passo, uma decisão.
Odeio sorrisos falsos e pessoas embrulhadas para presente. Odeio vidas perfeitas e pessoas inabalavelmente felizes.
Os caminhos são íngremes e requerem bons sapatos.
Ás vezes estamos a caminhar e o sapato rompe. Tentamos, insistimos, acreditamos que o sapato não nos irá trair. Insensível, cínico, falso. Sapato desprezível.
A vida é assim, mostra-nos quem são os verdadeiros sapatos nos momentos em que mais precisamos.
E, naquele dia, em que o chão fervia, os olhares reprovavam e o tempo escasseava, tu resolveste deixar-me.
Pés pretos e com bolhas por estoirar.
Com o andar confidente decidi percorrer o caminho, custasse o que custasse.
E o caminho era difícil.
Era difícil sorrir e não olhar para os pés descalços. Era difícil não olhar para as pessoas e explicar a minha condição. Foi quase impossível não inventar uma história heróica. Defendi-me na comicidade da situação, no ridículo de perder um sapato a meio do dia. E eles riram-se comigo.

Agora tenho um sapato novo.
Na verdade, não é bem um sapato.
È uma espécie de palmilha que ponho nos pés e me faz sentir mais confidente.
Bonita aquela palmilha.
Ela tem desenhos e palavras estranhas. Ela conforta-me o pé e protege-o das pedras do caminho. Ela faz-me rir.
Mas, as vezes, o meu pé lembra-se de que outrora teve um sapato. Um sapato inteiro e composto, brilhante e requintado. Um sapato que resistia à chuva e ao vento, à terra e à areia. Um sapato à prova de água, que fazia de mim uma estúpida rapariga sorridente. Odeio sorrisos.
Mas o sapato foi laceando e eu, sem notar, sentia-o mais confortável. Sentia-me em casa e podia ser eu mesma. Nunca mais me lembrei que deveria levantar mais os pés para caminhar.
Foi então que um dia o caminho tornou-se perigoso e a rapariga indefesa tropeçou na primeira pedra.
Adeus sapato.
Sempre soube que deveria levantar mais os pés para caminhar.

16 mayo 2007

Do toque à tecnologia

Ponho uma questão: “É possível gostar-se à distância?”
Dias de pensamento voado, de ideias conturbadas por sonhos distorcidos. Flashs de memórias esquecidas no mofo do cérebro decorado por teias de aranha.
O sentimento não é uma fotografia, nem uma tarde bem passada. Não é um sorriso, nem um beijinho. O sentimento é um clic.
Passar os dias em clics de felicidade espontânea, em choques eléctricos de sorrisos que rasgam o lábio e fazem ferida. E a banda sonora da nossa cabeça vai sendo projectada, qual Cinema Paraíso, no nosso corpo, no nosso olhar. Somos montras de sentimentos impalpáveis, somo papagaios de frases que outrora fizeram sentido. Somos um momento de pedra que encerra dias de suspiros sorridentes.
Agora tudo é passado.
Os sorrisos passam a saudade e o toque a tecnologia. As palavras dizem aquilo que a acção não pode mostrar e multiplicam-se os dias de melancolia.
O êxtase da re-união dissolve-se em lágrimas de partida. O sentimento persiste.
Os arrepios de felicidade insistem em invadir o corpo. E, à noite, antes de dormir, estrangulo a almofada, como se te desse um abraço eterno.
Sentimento ou recordação?

15 mayo 2007

Ditadura da felicidade

Hoje não quero ser feliz.
Tenho esse direito.
Há dias bons e dias assim-assim, dias maus e dias piores. Há dias absolutamente detestáveis.
Vou coser os olhos, com uma linha bem grossa, tatuar na testa uma fase de revolta, cortar as cordas vocais e deixa-las descansar. Hoje não sou ninguém.
Se as pestanas teimarem em abrir, os olhos irão jorrar sangue e manchar o lençol da cama. Se o sorriso quiser forçar, os dentes vão apodrecer com a luz do sol e, se o sentimento quiser fingir, ninguém me vai poder escutar.
Queria ser uma régua, uma fita métrica. Queria ser um calendário e poder riscar os dias sem que ninguém desse por nada. E se, de repente, hoje fosse já amanha?
Queria ter o poder de mudar o mundo.
Vou fazer uma revolução e acabar com esta ditadura. Destronar esta rainha absoluta de risos parvos e gargalhadas forçadas. Quero expelir um líquido verde e sujar as bandeiras brancas de paz. Hoje quero guerra.
Chega de ser politicamente correcta, socialmente aceite, amigavelmente integrada. Quero ser um bicho social de olhos cinzentos e feições apáticas. Vou deixar o meu cabelo transformar-se numa frigideira de óleo usado, e vou gritar grunhidos de horror para aterrorizar criancinhas ingénuas e desprotegidas.
“Então, tas boa?”
“Sim, tudo bem, e contigo?”

14 mayo 2007

Pensar não engorda

São dias inteiros em silêncio com a cabeça a gritar palavras de carimbo vermelho. Dias de monólogos sangrentos que apedrejam a razão e dominam o tempo de antena.
Memórias passadas, cozidas no forno com a nova receita de esparguete à bolonhesa.
Memórias.
Dias onde o sorriso não sai, onde a ilusão apavora e tudo deixa de fazer sentido.
Viver na sombra escura de um passado colorido, no corredor perigoso onde a cada porta uma facada.
Um sofrer pequenino de perfumes e sabores; de palavras e gestos; de sentimentos e descobertas.
Saber que a cada dia algo se desvanece, enche o vácuo do esquecimento e perde-se para sempre no labirinto do passado.
Não quero viver nesse mundo. Vou fugir e construir um lugar onde os pensamentos não engordam e as minhas calças preferidas ainda me servem.
Elas ficavam-me tão bem.

11 mayo 2007

buh!

Os dias são horas e minutos contados. Os dias são relógios e tic-tacs ambulantes. Os dias são “até já”, “até logo”, “tenho de ir”.
A vida é um cronómetro que corre ao contrário, que asfixia o calendário e bate recordes de maratona. São respirares abafados e corredores infindáveis.
É correr descalça e ter feridas nos pés. É fazer bolhas e brincar de rebenta-las com agulhas. É saltar os obstáculos e ganhar a maratona.
Mas com uma vida, onde o piscar do olho ocupa espaço, há que encontrar tempo.
Vasculha no fundo do baú, no meio dos trapos da avó. Abre a caixinha dos brinquedos e tira para fora os teus amigos imaginários. Fá-los renascer e dá-lhes um novo nome. Mas não quero um nome banal, batido, esfumado. Quero um nome inexistente, um código, uma careta. Dá-lhe uma cor e pinta-o de amarelo. Pinta-os a todos de amarelo e acrescenta fiozinhos dourados.
Agora os olhos. Faz com que se mexam e que possam olhar para ti. Fá-los vesgos e estrábicos, rouba-lhes a boca e põe-lhes um chapéu brilhante.
Enche as bochechas e arregala os olhos.
Aí tens um amigo imaginário. Ele pode acompanhar-te na correria do trabalho, no teclar compulsivo do computador. E, nos momentos de desespero, olhas para ele e ele diz-te, sorrindo com o seu ar assutador, Buh.

09 mayo 2007

detective privado

A cabeça é uma confusão de auto-estradas de alta velocidade que se sobrepõem e aumentam a sinistralidade. As ideias são carros económicos a turbo dísel que mudam de rumo e escolhem atalhos de terra batida.
Eu gosto de ti.
Tenho este problema. Afeiçou-me às pessoas e não as deixo sair. Infiltro-me nas rotinas, enfronho-me nos pensamentos, voo por entre as redes telefónicas e vou ficando.
Vou me deixando instalar no sofá azul e nas músicas da guitarra brilhante.
Desmaio no teu abraço e a tua barba por fazer enrosca-se nos meus cabelos despenteados. E agora somos nós.
Um nós que não existe e que não tem futuro, um nós oculto que se revela mais vezes do que gostaríamos, um nós de comunicação proibida.
Nós não existimos e eu gosto disso.
Talvez devêssemos contratar um detective privado, pode ser que ele nos descubra.

ser palavra

Perturbas-me.
Não preciso olhar para a porta para saber que chegaste, leio o teu nome no vento que passa. Tu ainda usas o mesmo perfume.
Olhas-me com o olhar que fazias aos estranhos, fazes-me caretas de desdém e contrais os músculos para explicar que estás com raiva. Desprezas-me.
O tom da tua voz oscila, daquela maneira que eu conheço, e tens o cabelo penteado para o lado errado. Já te disse que esse penteado te fica mal.
Não me odeies.
Eu não sou isso, eu não quero ser uma memória passada, uma lasca de madeira que incomoda mas não sai da ponta do dedo. Não quero ser aquele olhar de berros, nem o número proibido na lista telefónica. Não.
Faz calor, muito calor. A voz sai desinibida e as fronteiras são canceladas por copos de brindes inócuos. Tentei tocar-te. Tu desviaste-te como quem foge do arrepio da água fria nas manhãs montanhosas de camas quentinhas e lençóis de flanela.
Ama-me.
Baixinho e tranquilamente. Faz de mim uma palavra não dita e transforma-me em conversas de café. Não quero ser pessoa. Quero ser palavras. Mas não daquelas escritas nos jornais e nos suplementos de sexta-feira. Quero ser aquelas palavras proibidas, daquelas que invadem os sonhos e que viajam pelas entrelinhas dos filmes de domingo à tarde.
Cria um lixo mental e põe-me lá dentro.
Por favor, recicla-me.
E, naquela noite, trazias uns ténis castanhos. Sim, eram aqueles que eu te ofereci.

05 mayo 2007

primatas polares

Às vezes o tempo pára. O bater do coração engana o tic-tac do relógio e tudo acontece lentamente. A porta não tem chave e o seu ranger é abafado por uma música de frio polar e primatas irrequietos.
Vamos viver nesse mundo.
Aqui não contam os problemas, as diferenças e as histórias passadas.
O aqui é um tempo abstracto onde os sons se transformam em conversa e os perfumes são gestos de meiguice disfarçada. Um momento em que a respiração arrepia os sentidos, estremece a pele e suspira baixinho: sim.
São sons agudos e sons confidentes. Sons gemidos de um abraço de conforto. É uma comunicação cúmplice, onde o silêncio faz caretas e festinhas.
Não há família, nem filhos, nem casamentos, nem alianças. Não há altar, nem vestido branco. Há um aqui. E um suspiro.
Tic-tac.
O sol nasceu e o tempo descongelou.
São horas de ir para casa.