31 enero 2008

os cantos

Revolta-me, é claro.
Eles perseguem-me, colam-se à minha cabeça, avassalam a minha imaginação. Torturam-me com aqueles sussurros amolecidos e olhares afeminados.
Mas a vingança aproxima-se. Vem com o seu manto de liberdade, espalhando a inveja de sorriso malicioso.
Não há mal nenhum em tal costume. Os jovens têm mesmo essa função e os cantos não têm outra utilidade. Olho para o meu quarto. Recheado de cantos desabitados.
Quero ir. As minhas pernas mexem-se sem que eu mande nelas. As pernas também são pessoas. Inferiores aos braços, é claro. Mas valem-se a si mesmas.
Elas querem andar. Até onde for preciso.
Afinal aqueles cantos, coitadinhos, não podem continuar tão abandonados.

A senhora saiu

É branca, não há problema.
Vale só um Pai Nosso. Ou então uma Avé Maria, que ainda vale menos no bafo de vinho do padre curioso.
É como um dia de Inverno debaixo do cobertor e da página 153 do livro de lançamento. E toca o telefone. A empregada vem dizer, com pés de algodão, que amiga quer passar aqui. Talvez um chá com um bolinho, quem sabe. Só para pôr a conversa em dia. E ela, debaixo dos lençóis, com cara limpa de maquilhagem, diz no meio do cabelo desalinhado: “Diga que a Senhora saiu”.

30 enero 2008

Nut.

Estava com olheiras, coitado. O truque dos três lugares no avião não tinha sido suficiente para comportar tamanho dispêndio de energia.
Gosto de reparar como os seus olhos praticamente inexistentes brilham pela conexão transoceânica. Parece que a voz mudou, não sei. Já não me lembrava como eram bonitas as suas mãos. Hoje estão diferentes. Dinâmicas, controladas, com o ritmo de uma fila que virava o quarteirão.
Surreal Que grande noite.
Uma noite que durou um dia, ou mais. Foi uma vida e uma morte anunciada pela companhia telefónica. Foram choros e gritos e mensagens cheias de estrelas. Risos e gargalhadas derretidas. Carinhos electrónicos.
Mas depois chegou o electricista e a história mudou. Ele apareceu no meio dos olhares curiosos no metro e deu-lhes uma nota para a mão. Cortou a noite do aeroporto. Subornou as horas de sono. Já não interessava o comboio, o metro, a morte ou a ressurreiçao. Para que falar do público, dos gritos ou do mullet cor-de-rosa?
Ele veio lá de longe, do meio da neve, com a sua casa de guitarras e amigos estrangeiros. A discoteca foi na cozinha e o dinheiro não foi problema.
Abraçou-os. Contou dos pais, das viagens e como a esperteza vale mais que um diploma. Chamam-lhe Nut. “Now I understand why” disse o amigo que abusou do ginásio.

24 enero 2008

Elgydium

Às vezes tenho dificuldade em dizer certas palavras.
Apercebi-me disso hoje.
Talvez seja mais do que isso.
Sinto que as palavras não podem expressar realmente aquilo que sentimos. Essa tal palavra. Aquele cliché que vem no fim do sms e que até tem abreviatura. (Será que quando vem abreviada é porque o sentimento também abreviou? Será que a escolha do “s” ou do “x” faz alguma diferença?)
A abreviatura consonântica que me faz ranger os dentes. Porque dizê-la sempre no fim da conversa, como ritual sagrado e vazio?
Não quero ser o Garra anti-sistema, anti regras sociais pré-estabelecidas. Quero perceber se aquela sensação de frescura, de publicidade televisiva com direito a seguro para os dentes, é o significado deste cliché tão cibernético.
A palavra leva consigo aquele gostinho remanescente a hortelã? O apertar que não deixa marcas? O bico que não entope?
Porque se sim, e se o mundo estiver do meu lado, descobri finalmente o significado de mais um cliché detestável.
E deixo-o aqui, bem no fim deste post.
Sdds

22 enero 2008

Caixeiro Viajante

Narizes empinados no ar congelado dos espelhos. Labirintos de andares interrompidos e salas ocultas. O balançar embala o estômago satisfeito e faz o sol embelezar melhor.
Não caias, segura. Apoia-te a mim. Não há problema, estamos todos num desmoronar de camera lenta. O monumento do nosso orgulho desaba aos poucos, como prédio de Veneza inundado. Imagem patética.
Queria ser caixeiro-viajante. E ser feliz. Absorver as cores do Tango e as mãos que saem da areia, dizer um bom giorno e um buon dia e causar sorrisos derretidos. Estão a cair os muros e eu só precisava de um pouquinho mais de cimento.
Não é mão-de-obra que falta, não. É dificuldade de equilíbrio no abanar do navio em alto mar. São 3mil pessoas. Só uma se aguenta.
O comandante fala um italiano tímido e diz por trás da sua fortaleza. Eu consegui. O balançar não me afecta mais.
Jornalistas, atentem! Preparem já o lead e punch final. O título é obvio.
“Caixeiro-viajante: a profissão do futuro”

09 enero 2008

precariamente Noite

Noite.
Noite vagabunda, irresponsável, secreta.
Vivo e respiro para ela. Para aqueles arrepios escondidos debaixo do cobertor. A luz artificial que faz brilhar os momentos históricos de revelações estonteantes. O zumbido constante intercalados com o soluçar da máquina. Melodia nostálgica de situações precárias.
Os minutos arrastam-se no seu vagar preguiçoso. As horas, diamantes lapidados na perfeição. Vem, chega rápido. Pingos de águas caem do tecto e a tortura começa a ensandecer-me.
Já está quase ai, tem calma.
Imagino, com sorriso desbotado a pauta do dia. As risadas e as trevas, o esconder e o proibido. Talvez um ensaio do grande clímax. Não, talvez precise arranjar o cabelo, ou aprontar o quarto.
O melhor é ver se está tudo a funcionar.
Já vejo estrelas.
Parece que hoje não haverá Noite.

04 enero 2008

pensamento rebelde

É como se de repente a corda se rompesse, o vidro rachasse e a cegonha caísse.
A voz se exalta e o ardor dos olhos começa a incomodar.
Já não há como discorrer pensamentos neste raciocínio travado. A cabeça respira um batimento cardíaco nervoso e a boca contém-se, costurada pela educação de anos.
Dizem que nos podam. Eu diria que costuram as nossas acções.
Pensamento rebelde, arisco, matreiro. Mas na hora, no xis do momento em que o timbre irá ousar e a língua se sujar, a boca retrai-se com o sal da água. Resseca, foge, esconde-se entre os dentes de cáries de doces comidos às escondidas.
E ai surge o sorriso esmaltado. O brilho cínico. “É melhor reflectires”.
Mais uma vez de volta aos pensamentos.
Desperdiçaste a tua chance.
Cobarde.

Sim

Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser.

Ricardo Reis