26 julio 2010

Gato selvagem

Engano-me. Engano-me dia a dia pensando em ti como penso em mim. Pensando em ti como gostaria que fosses. Pensando em ti em modelos passados. Não és, mas às vezes pareces ser. Fecho os olhos e por momentos, fragmentos de momentos, deixo-me levar por essa espiral de algodão doce perfumado, por esse cobertor plumas dos contos infantis. E somos felizes. Como as perdizes.
E quando dizes que não, como quem convida para beber um copo, quando dizes que não, como quem diz que sim, quando dizes que não, eu engulo. Engulo e rebaixo-me neste meu papel secundário, neste meu pseudo-não-papel, como gosto de chamar.
Porque se não sou nada, nada posso exigir. Se não existo, não tenho voz. E calo, enquanto tu continuas, feliz, conjugando os teus verbos no singular, estabelecendo a tua simples lista de prioridades. Exercendo o desapego nessa tua vida contraditória de gato selvagem.

25 julio 2010

A negação

Eu sempre fui aquela que se vai.
Sempre soube que é mais fácil fugir que dizer adeus, mais fácil ir que ficar, mais fácil negar que enfrentar.
Sempre fui pelo mais fácil.
Sempre fui. Nunca fiquei.
E agora dizem-me que se vão e eu tenho vontade de me ir antes. Só para não ficar. Tenho vontade de pegar em tudo e fugir. De fazer um drama, colar-lhes os pés ao chão, dizer que melhor infeliz e perto, que feliz e longe. Dizer-lhes tudo aquilo em que não acredito.
Porque não importa. Eles se vão. Não há maneira, eles se vão.
E então eu nego.
Finjo que não é comigo. La-la-la-la-la. Que não é verdade até ao derradeiro adeus, que não acontece até acontecer, que sofrer por antecedência é coisa de fracos. E a mim, ensinaram-me a ser forte. Então engole o choro e pensa noutra coisa. Nega até ao último momento. Nega que desta vez, és tu quem vai ficar. E sofrer.

22 julio 2010

James Bond

Disseste que bom. Contra todas as minhas expectativas disseste que-bom. Assimila, assimila. Q-u-e-b-o-m. B-b-b-o-o-o-m-m-m.
E então congelei.
Lembrei-me de tudo o que tinha anotado para te dizer e acabei por calar, todas as conversas que escrevi na minha cabeça e, instintivamente, apaguei.
E de rascunho em rascunho, construíram-se romances inteiros, auto-estradas de histórias desinteressantes, momentos que moldam a nossa vida. As setas, pela primeira vez, vão em direcções opostas. Radicalmente opostas.
Tu no deserto, eu, nas ondas da praia.
Tu com som e eu com palavras. Tu, indiferente, eu, congelada.
E no meio deste caos averbal, fizemo-nos estranhos.
Desconhecidos do pé à cabeça. Do pensamento à alma.
Ignorados. Incógnitos.
Desprezíveis, talvez.
E foi então que hoje o teu agente secreto falhou. Caiu-te o disfarce, a máscara e a pistola. Esqueceste-te que neste jogo, cada palavra é uma bala. E feriste.
Então apercebi-me que estou a jogar sozinha e que nem sequer és tão sexy como o James Bond.
Apertei o off e guardei o brinquedo no armário.
Quem sabe outro dia.

13 julio 2010

Suspiro

Apareceste quando tudo se avisava tão negro. Quando a vida não queria mudar, quando as correntes do passado me faziam feridas nas mãos. Quando, prisioneira, dava aquela batalha como perdida. E então chagaste, tão normal, tão cheio de ti. E, nesse momento, suspirei. E depois suspirei pelo suspiro. E uma vez mais pelo suspiro do suspiro. Meti-me num ciclo vicioso de respiração sonora. E fui feliz.

06 julio 2010

Chauffeur

E de repente estávamos ali, em plena saída do liceo, em pleno “aina men, bueda louco”, em plenas duvidas existências. Porque se ele gosta de mim, mas eu gosto do outro, e o outro gosta dela, então ela no fundo gosta mesmo é do que gosta de mim. Portanto a vida não tem sentido. Existência injusta. E partimos para a ignorância. Bebemos álcool barato e fumamos dois cigarros com uma postura de “quem é que manda aqui?”. Pegamos no primeiro da esquina e buscamos-lhe uma qualidade. De preferência que seja giro, de boas famílias. Mas se aperta o desespero não faz mal, serve que seja mais velho, que, sei lá, conheça os RPs das discotecas. Pronto, está bem, não sejamos tão exigentes. Que tenha um carro, basta que tenha um carro que um chauffeur, precisa-se. Até que um dia pegamos nesse carro, no dito carro do chauffeur improvisado e perdemo-nos no mundo. Fazem-nos uma surpresa adolescente e quando nos damos conta estamos ali, com dores nas costas, sorriso derretido e abraço apertado. Pensamos, preciso arranjar outra desculpa para gostar tanto dele. A do chauffeur não está mais a colar.
Gloriosos tempos de adolescência.

01 julio 2010

O unicórnio

Há um unicórnio no meu quarto. Sim. Um unicórnio gigante que assombra a minha vida. Um quem sabe um dia que não me deixa descansar. Ele desfila, esbelto, falando e vendendo um futuro feliz. Tem voz doce e tom meloso. Historias viajantes, dia-a-dia apaixonado, noites de música e cinema, tardes de passeio e jogos na relva.
O problema é que às vezes, em lapsos de consciência, acredito nele, esse mentiroso, farsante, hipócrita. E então a vida muda de tom. Ganha uma serenidade prazenteira, uma segurança de destino traçado, de vidas cruzadas, de forças exteriores ao mundo. E essa ideia faz-me sorrir. Eu, tonta, imbecil, sorrio. Até que o lapso passa, a banda sonora risca-se, a razão ganha a batalha, abre-se a janela e por ela entra a vida real. Fere os olhos, magoa o corpo. Nódoas negras de projecções fictícias de uma menina sonhadora. A cabeça lateja de um desespero angustiante. Hiperventilação.
Raio do unicórnio.

A vinoteca

Há dias em que acho que vivemos numa bolha. Numa bolha de sabão apertadinha e transparente com reflexos violeta e cheiro a detergente perfumado. E nós ali dentro, sorridentes. O mundo pode cair, o telefone morrer, o relógio espernear. Nós não ouvimos. A nossa bolha é a prova de som.
Só que o calendário passa e com os riscos há sempre um despiste, um pensamento mais profundo, mais racional, mais sei-lá-o-quê. Um algo que, pleft, rebenta o nosso refúgio de passeios e abraços, de conversas na cozinha, de pequenos-almoços com dedos sujos de jornal. Pleft. Vem o mundo e leva-te com ele.
E então fazes-te outro, mais tu, mais o que tu queres ser. Menos eu. Menos nós naquela redoma com gosto de sal. E desse eu não gosto. Tão banal, tão homem moderno, tão centrado no seu mundinho de rotinas tarde-noite, tão pouco aquele eu que um dia encaixou tão bem numa bolha de sabão que voava perdida pela cidade de cristal.
Se calhar isto são só rabugisses de uma sonhadora. Ou, quiçá, visões quadradas de uma velha viciada. Se calhar o melhor seria parar de escrever e ir afogar as minhas mágoas na vinoteca mais próxima. Não sei, diz-me tu.