30 junio 2009

Outro dia normal

O meu calendário tem buracos e desenhos. Os seus números ganham nomes e os dias um karma que tarda em perder-se. A minha vida anda em contrarrelógio de metas pequeninas, aos tropeções de semana a semana, de festa em festa, saltando, com pernas compridas, os dias normais que rasgamos na agenda.
Mas o meu calendário, de um momento para outro, perdeu um dia do mês. O que decidi abdicar, tempos atrás, naquele fim-de-semana cansado de dores musculares. Num ápice, esse número despiu-se do seu traje de festa, perdeu os corações que o rodeavam, os postais improvisados e os presentes às escondidas. Juntou-se, choramingando, à normalidade dos dias passageiros que à noite dormem abraçados com mais um risco do calendário.
Hoje quando acordei limpei as lágrimas ao dia trinta e disse-lhe baixinho: “Bem-vindo a mais um dia normal”.

28 junio 2009

Pés queimados de desejo

Era uma competição de carrinhos de supermercado, uma tarde de madeira junto ao mar. A cidade estava de férias e as sardinhas tinham sofrido uma repentina chacina. O mar mais vazio e o estômago mais cheio, diriam os radicais.
A mesa de jantar do senhorio que nos maltratou, a cadeira roubada do liceu enquanto a menina bonita distraía o segurança. O plano perfeito para aniquilar aquela estante lá de casa que a bisavó deixou-nos no testamento. Tudo teria finalmente um objectivo nobre: aquecer os corpos ébrios de estudantes festeiros, trabalhadores ressacados e desocupados em busca de evasão.
Ajudaram a queimar os pés de desejos e a iluminar os brindes a um futuro melhor. Testemunharam as juras de amor eterno e os arrependimentos de dia seguinte. As zangas sem sentido e aquela paixão encontrada numa noite sem dormir. Com as horas, o fogo transformou-se me fumo, esse perfume que tatua os corpos na famosa noite de San Juan.

17 junio 2009

Manjerico

Foi uma noite de danças pelas calçadas escorregadias, de gritos encostados a paredes molhadas, de abraços e apertos que não queriam mais largar.
Foi-se um manjerico e veio outro ao som da música com cheiro a sardinha assada. Aquela que se canta bem alto, com um copo cheio a transbordar para as mãos. Tropeçávamos, sem querer, em pés conhecidos. Um abraço, uma jura de amor eterna, um adeus de data indefinida. E íamos caminhando, como quem vai pela vida sem destino, à procura de mais rostos, de mais histerismo, de mais conversas confessadas num degrau de uma escada qualquer.
Por momentos o mundo parecia uma dança de multidões. Tão barulhento, tão confuso, tão dramático…
E os gritos e as lágrimas, os empurrões e os insultos, as promessas e os segredos, ficaram escritos naquelas esquinas embriagadas, naqueles olhares perdidos pelas ruas sem nome da nossa cidade. E serão esquecidos até ao dia em que, entre dois copos ou três mais, alguém relembre aquele dia em que…
O dia em que, diz a lenda, se celebra a melhor noite do ano.
O dia em que, mais uma vez, a profecia voltou a cumprir-se. Mas desta vez, sem casamentos.

15 junio 2009

Cara de póquer

Tu mentes-me e eu finjo acreditar nesta teia de pensamentos inventados que fomos construindo. Passeamos por ela, quais aranhas coxas de uma pata, e fazemo-la nosso reino. Somos assim, mentirosos compulsivos.
E não vale negar que é mentira sempre que dizemos que o sol brilha outra vez. Tripla negativa.
Não vale fingir que é verdade que já estamos em outra, que o resto é passado, que somos mais, melhores e independentes.
Não vale porque eu há muito tempo descodifiquei a tua cara de póquer. E o meu nariz, esse imbecil, acaba sempre por denunciar os meus pinóquios.
E a corda vai ficando cada vez mais grossa, mais resistente, mais estável. Até chegar ao dia em que deixemos de reparar que vivemos neste palácio de teias de aranha.
A tripla negativa torna-se verdade, e nós, uma mentira.

08 junio 2009

O balão e a criança

Quero fazer-te uma rasteira e rir-me de ti quando caias ao chão. Quero mostrar-te a língua e cuspir-te bolhas de saliva. Que vontade de puxar-te os cabelos e mandar-te migalhas de pão à cabeça.
Não quero mais ser prudente, nem razoável. O meu corpo está inchado de tanto engolir os insultos que ensaiei na minha cabeça. E assim ando pelo mundo, deformada como um balão amargurado que voou da mão de uma criança.
Então hoje decidi que não quero mais ser balão. Por um dia, pelo menos por um dia, serei eu a criança.