29 septiembre 2007

cola peganhenta

Hoje acordei com o vento a sussurrar baixinho. Parecia haver fios invisíveis a puxarem estridentemente os meus músculos. Eles contrariam-se em forma de boca aberta e lábios erguidos. Músicas cantaloravam na minha cabeça, como vozes de divas vindas de lugares perdidos.
Porque há coisas que nos fazem pensar. E há objectivos que não são para daqui a uma hora, ou um mês. Há coisas na vida que são para longe. Que são para o lugar onde a cidade borbulha e o horário esmaga a correria atribulada. Há momentos da vida com cores e cheiros, com raças e idades e instantes.
E atingi-los não é um sonho.
Fitas vermelhas no fundo do túnel que nos fazem querer correr mais depressa, e virar na esquina à esquerda, em busca de um caminho mais rápido. (Nunca vires à direita. Pode haver um precipício). Viagens ao mundo em busca de um eu que se perdeu nas birras e das palavras pingadas no papel. A busca de uma solidão acompanhada.
E às vezes atrelamo-nos às pessoas.
Têm um cheiro confortável, um sorriso familiar, uma parte deles que é sé nossa e fica escondida no fundo oculto do saquinho de recordações.
E nesta matéria não há chaves. No mundo das solidões não há serras eléctricas e nem cadeados. Foram abolidos, proibidos, censurados.
Este fascismo de descampados colectivos é uma tortura pequenina que pica, mexe, coça naquele lugar onde é impossível tocar. E vai se tornando maior.
Até que um dia recorremos à cola.

contrariedades

As diferenças gritam e exclamam e goleiam na baliza oposta. Dizem que não conheço o suficiente. Pode ser.
Sou demasiado eu mesma na minha concha, no meu pé e meio de distância, com sorrisos e carinhos corteses. Sou fugidia nas brechas e nos silêncios. Sou sombra estrangeira que observa e pensa.
O olhar altivo e brioso de quem é mais, de quem pode ver de outra maneira. E a mistura é difícil e é emproada, porque entoam os olhares de quem partilha do mesmo mundo. E sem erro, nem dúvida, batem naquela parede invisível, tão morosamente erguida. Esmagam-se e ensanguentam-se. Porque ali só passa quem souber. E saber é reconhecer o parco, limitado espaço.
Há valores e há listas. E há futuro, futuro.
Às vezes acho que o presente é efémero. E outras vezes quero guarda-lo para sempre no meu congelador.

28 septiembre 2007

desculpas desculpas e desculpas

É uma batalha constante de sins e nãos de perto e longe. Espadas que lutam com a volúpia de carícias escondidas, correntezas de murros e arranhões em mares onde o peixe é tubarão. Vem, mata, morre. Tortura-me com olhares e palavras, arrasta-me por esse rio de dúvidas e hesitações e consome-me, qual labareda resplandecente.
Somos todos poemas e sorrisos secretos, histórias e gestos cúmplices, palavras e gostos memoráveis.
Porque a distância é um cliché.
Ali tudo é possível e o sentimento é temperado num tubo de ensaio com água ocular e cabelos lambidos. É tudo tão perfeito quando o tempo é pouco e as coisas boas têm mais valor notícia. Elas explodem e circulam, cirandando pelo ar e mudando de cor à medida que o vento sopra baixinho.
E à distância é possível suspirar e deixar cair lágrimas de desespero feliz. E à distância podemos ser foleiros e lamechas e pegajosos e piegas e, finalmente, dizer aquelas coisas que soam alerta na nossa cabeça. Não interessa o sinal vermelho, nem o stop, nem os quilómetros. Porque à distância podemos tudo. Até cliché.

23 septiembre 2007

um especialista

Queria uma bola de cristal. Agora que o vinte e um está por perto, achei que deveria montar uma lista de presentes. Os números adicionais apanham-me sempre desprevenida. Desta vez não quero festas, nem amigos (quais?), nem telefonemas.
No topo da minha lista vem escrito, Arranjem-me uma bruxa, uma pedra preciosa, um baralho de cartas, um espelho mágico.
Vou ser criança mimada que esperneia e gesticula, que grita e irrita. Aquele bebé intragável que faz birras insistentes até conseguir o que quer. Transformei-me, regredi.
Não é um pedido assim tão difícil. Nem um objectivo demasiado ambicioso.
Fecha os olhos dois minutos e imagina-te daqui a alguns anos. Dez anos.
Vivo num lugar nublado. E mesmo que viaje a onda de névoa acompanha o meu percurso. Quero ouvir-me, fala mais alto, grita e diz-me que língua falas. Pelo menos dá-me uma pista. Escreve num papel o teu estado de alma e põe em P.S a tua profissão. Não entres nessa nuvem de poeira, não te feches nas linhas das minhas mãos, dá-te a conhecer, peço-te, não me tortures mais.
Preciso de um especialista, de um doutor, de anos de estudo e experiência.
Pode ter cabelos vermelhos e uma verruga na ponta do nariz, pode ser gordo e transparente, pode ver além do meu corpo. Podes ser tu, quem sabe.

chiu

Ele tocou-me. Olhou para mim com cores de mel, com águas de sal, com uma lista infindável de palavras caladas.
É uma pequena contracção de um músculo, um majestoso contorcer na cadeira, um elegante, profundo e distante silêncio.
O calar não é um bicho feio, nem um elefante pesado. Ele é um vento fugidio que voa entre brisas aconchegantes e sonoras.
O silêncio coloca-se ali, ao meu lado. Tento tocá-lo e ele escorrega-se-me pelos dedos de verniz vermelho. Vem Silêncio, quero-te aqui. Cala esta multidão enlouquecida de palavras vazias e conversas inúteis. Aproxima-te de mim e toca-me com os teus olhos. Desce à plebe, olha-me de perto e coloca-te no teu lugar. Pesas-me a consciência e afastas-me os sentidos. Fazes-me acelerar o paço, correr as escadas, desfiar o frio do congelador industrial.
Mas dizem que não podes ser distante. Sábias palavras.
Sai dessa tua poltrona preta, enfrenta o preconceito e a racionalidade. Aproxima-te, por favor.
Faz-te meu.

17 septiembre 2007

o pinguim

Já tinha errado uma vez e iria errar de novo. A prática faz a perfeição.
Mas os erros são dúbios.
Olhas, analisas, preocupas, controlas. Achas que consegues controlar.
Resistes, amassas, recusas.
Mais um passo e menos uma defesa.
Sou fronteira mascarada de limite. Quero ir até ao topo, quero fugir das minhas possibilidades, quero correr e escorregar na água gelada das nascentes.
Mas eu sou marco e sou divisa. Um dia ensinaram-me a esbate-la.
E nesse momento senti alguma coisa.
Um calafrio na ponta dos dedos, um tremor nos órgãos escondidos. Uma sensação. Era como se quisesse pensar e tudo estivesse branco. Não há montanhas, nem rios, nem frio e nem nascente. Há uma cor e o infinito.
E agora podes ser quem quiseres e dizer que a tangerina tem sabor a beijo. E podes beijar a fruta. Desalmadamente.
Mas eu já tinha errado uma vez. Eu e essa minha mania de ser perfeita.
Prevejo os erros a distâncias alucinantes. Sofro-os em quantidades industriais. Vivo-os e remexo-os. Contorço-me e sufoco-me
Mas um dia ensinaram-me a rabiscar.
E ofereceram-me uma caneta.

Quem me dera ser um pinguim.

16 septiembre 2007

hoje é fim de semana

Eu tentei apressar-me. A sério.
Mas há sempre tantas coisas a importunar o caminho. Os radares a detectar a velocidade, a gasolina que teima em faltar, o autocarro que demora sempre a vir. Às vezes parece que o casaco não combina com os sapatos ou que os brincos não vão bem com o colar.
Há dias em que acordo e tenho um olho maior que o outro, uma perna mais comprida, uma unha que se partiu.
E esses dias são inúteis. São dias de espera.
Parece que tudo anda mais devagar e é tão difícil tomar decisões. Turbilhões de ideias que salpicam todas as partes do corpo. São coloridas e retalhadas, saltam e escorregam pelas curvas e declínios de uma pele queimada.
Nesses dias os pensamentos brincam com a minha cabeça, fazem puzzels impossíveis, correm e escondem-se das chaves dos enigmas.
E não consigo andar.
Desculpa se me atrasei.
Mas parece que foi preciso uma eternidade para chegar aqui.

15 septiembre 2007

povoada

As pessoas têm barrigas e mãos e unhas sujas. Têm pelos pretos a saírem de lugares estranhos, têm dentes fungosos, olhares cabisbaixos, olheiras fundas, gorduras acumuladas.
As pessoas têm hálito e gases, e suor nas mãos e nas costas. As pessoas falam e gritam e gemem e arrotam.
Por um momento não tenho sentidos. Sou uma bolha abstraída do mundo, desprezada pelas sensações, esmagada pelas peles flácidas a precisar de um pouco de cera quente.
Tenho nojo.
Repugna-me a maquilhagem berrante, as roupas justas demais, as discussões de aperta-empurra.
Mas é aquele o momento, não posso deixar escapar a sorte da solidão. Voem pensamentos, venham e saiam e rodopiem pelo ar. Cambalhotem por cima de mim.
Sou eu e é o futuro. E de repente acabou a pressão, o nervoso e as mãos a tremer. Acabou o “para amanhã” o “não vou conseguir” o “não posso falhar”.
Foi só um segundo.
Um bom segundo. Havia gelados e sorrisos e amigos e praia e Marques Mendes e José Sócrates e passeios e mar e perfume e dietas e havia também uma pitada de passado, com um ventinho de leve a refrescar o dia.
Agora sou grande e não posso olhar para trás.
Até porque tenho um sovaco peludo encostado à minha bochecha. Seria um golpe arriscado.
Ultima estação. Veste, arranja, normaliza.
E se não sentires que pertences àquele mundo. Sorri.
É sempre uma boa opção.

09 septiembre 2007

coisas de bagagem

Enfia a tua casa numa maleta e foge com ela. Mas não te esqueças. Não podes avisar ninguém.
As coisas têm tendência a fugir, escorregar pelos cantos da mala, escapulir-se. Atenção: verificar sempre com muito tento se a bagagem não tem furos.
É difícil controlar o rumo das coisas. Que mania.
As coisas têm vida própria. Têm a sua própria bagagem, os seus próprios pés. Vão-se embora.
As coisas têm lágrimas nos olhos e têm maquilhagem borrada. Têm bilhetes de ida e às vezes datas de volta. Mas nem sempre.
Atenção: cozer os furos da mala com a máquina; fazer um ponto duplo e reforçado.
E nós somos também bagagens. Talvez apareça no google se pesquisarmos bem.
Pesquisar é uma arte.
Todos já fugimos alguma vez. Todos já abandonámos um ferido em combate. Todos já encontrámos um furinho, uma porta secreta, um túnel subterrâneo.
E todos já tiveram medo que a sua mala esvaziasse.
Mas para isso tenho uma dica: Colocar sempre um forro duplo. Ali ficam guardados para sempre aqueles que não queremos deixar fugir. Nunca.
Comigo funcionou.

04 septiembre 2007

comprimidos para dormir

Não há estações do ano e os dias mudam ao sabor das marés (e da capacidade de ver belo no interessante).
Interessantes as pessoas que saem, fogem, encorajam e arriscam. Aquelas que deixam para trás a vida e a rotatividade do mundo para procurarem um sonho. Um sonho comum.
Diria que são sábias as pessoas que concorrem, competem que adormecem e acordam em função de uma meta: ser o melhor.
A supremacia é um extremo impalpável que nem o sentido mais apurado pode descobrir. O oculado que do alto dos seus escassos centímetros ousa desafiar em língua estrangeira os políticos nacionais. O bem parecido que só conversa com olhos azuis e que achou a apuração fácil demais, o pai de família que não sabe interromper frases e sente-se estrangeiro na cidade grande, o sumo de frutas com problemas de fígado, a estrangeira que faz perguntas vocabulares durante as aulas.
A cadeira não é confortável, o computador não é visível, a importância não é relevante. Um nome escrito em caneta azul no fim da página, uma pergunta cliché para quebrar o gelo.
Sem amigos, sem referências.
E aqui sim existe vida.
Energia em cada palavra dita, ideais em cada tinta debotada no bloco, revoltas internas com cada regra imperceptível.
Competição de sorrisos. O valor da obra é a capacidade de triunfar não obstante os obstáculos de contentamento, nem deixar-se vencer pelo “boa noite” quando na verdade deveria ser “bom dia”.
Mais um risco vermelho, e mais um risco vencido. Poderia acordar a sorrir, eu sei. Poderia acordar com preguiça, eu sei. Poderia acordar na praia, no sol, no céu azul e na casa silenciosa. Eu sei.
As escolhas são copos de leite quente que nos vão ajudando a acalmar e a finalmente adormecer.
E a sonolência passou, venham os sonhos.

01 septiembre 2007

o melhor ângulo

Fecha os olhos, espreme-os, cola-os apertados e conta.
Contar foi o método mais eficiente que ela descobriu para afugentar a raiva. A resignação. E eles obedecem-na, emudecem mal o desfile de números parte do seu cérebro em direcção ao além. Os espasmos irrequietos, a vermelhidão das bochechas se esbatem e as orelhas diminuem.
Conta. Recita números, qual poema de Alexandre O’Neill. Também ele viveu em Constância. A terra dos poetas.
Afasta os pensamentos com resoluções aritméticas. Prova, justifica, aplica, desenvolve. Já não existem questões simples. O o quê morreu em combate entre o quarto e o quinto ano. Entre a mudança de caligrafia e a introdução à era paleolítica.
Ela vê-se ao espelho e a sua imagem está desfocada, qual narciso no rio. Fosse pela distância ou pelo brilho da ponta branca dos sapatos que reluziam ao sol. Sapatos mimados que vão morrendo, congelando e esbranquiçando as pontas. Aquele liquido salgado que verte dos olhos, parece ter um efeito decisivo no plástico falsificado dos sapatos. Ela pensou que um dia deveria patentear o seu líquido de pupilas verdes.
A falta de visão era uma vergonha que, no entanto, não a impedia de contemplar o seu monte de farrapos desfiados e fora de foco. É uma questão de procurar o melhor ângulo.
Bonita, ela.
Um, dois, três, quatro, cinco…
Bonita, ela.