26 febrero 2008

Ossos do ofício

Vai e muda o mundo. Pega no teu pacote de cinquenta canetas bic, nos bloquinhos que coleccionaste pela vida e descobre.
Bate à porta. Suja o sapato. Não basta que senhor tenha mordido o cão. Tens de ir mais longe. Onde nenhuma pergunta indiscreta chegou, onde não conhecem o flash nem a assessoria de imprensa.
Encontra o que mordeu o zoológico inteiro. Esse sim. Conquista-o.
Fá-lo contar-te o sonho de ontem e o que comeu ao almoço. Come com ele. Come aquela refeição super calórica e desculpa-te com a tua nutricionista num sorriso orgulhoso: “ossos do ofício”.
Os filmes estão feitos. Os conselhos estão dados.
Agora só falta tornar o ofício real.
E eu tenho tanta pressa.

18 febrero 2008

A chuva faz pensar

E lá estava eu naquela terra escorregadia de temporais com estradas invisíveis.
Os pés afundavam-se em ritmo de marcha fúnebre e as botas novas gritavam desesperos de lama.
Isolei-me cada vez mais naquele redemoinho de terra molhada. Cobarde, não conseguia chegar ao meio. Àquele ilhéu de equilíbrio perfeito. De contos de fada e jaulas para anelídeos.
O cobertor já não servia para esconder as ideias espinhosas. Era um tudo ou nada que assustava. Um lacear, como bota de couro usada. Um ceder que não pertencia ao dicionário.
E naquele dia. Dia de tempestade lasciva, veio a revolta e as palavras temidas.
Era tempo decisões.
Afoga o orgulho, ensopa os pés.
Chegou a hora de atravessar.

17 febrero 2008

Alguns ajustes.

De repente, já eram cinco, seis, não sei.
Foi como se nunca tivesse saído dali. Não me tentem esconder. Eu sei que o tempo parou, que lhe deram um remédio daqueles que os bichinhos não comem. Embalsamaram-no, qual koala em montra de vidro, e mandaram-no esperar por mim. Paciente, parecia não querer andar.
Ainda há a mesma amiga cujos lábios continuam sujos de vinho. Ela ainda grita distorcidamente com frágeis beliscões, eu testei. Os calções continuam escondidos no casaco vermelho, com uma máquina do Paraguai e aventuras, daquelas só dela, desta vez em terras estrangeiras. Amarraram-lhe o braço ao peito mas ainda vai às manifestações. Assiste-as do café. O pior é cortar a carne.
Há aquele que cresceu com a história da depilação e do novo creme corporal. Ele lava a sua própria roupa, no seu humor característico, tão intrigado. Vão se casar, não há ainda data certa. O meu primeiro casamento.
Ele continua preso a este isolado país que não lhe pertence. Ele é do mundo e das viagens, dos cursos que os pais engolem, da música estranha, dos livros eruditos, dos beijos de entretenimento.
Há aqueles que não falam. Ou se falam, fazem silêncio. Há aqueles que continuam contratados pelas máquinas fotográficas para fazer rir. Que chegam, dão aquele abraço, e são família outra vez.
Agora havia uma diferença. Aquele tal rapaz. Que leva a mala, encontra a carteira e ajeita-me o cabelo. Que fala de música e filmes que ninguém entende. Que tem amigos com casas embebedadas.
Afinal o tempo não parou, precisou de pequenos ajustes. Poliu aqui, afinou ali.
Sinto que agora ele vai acelerar.

14 febrero 2008

11/02

“Perai, vou só reiniciar o computador”

Olha ao espelho. Olha de novo.
Muda de casaco. Ele não deve gostar desse.
- Apressa-te. Se calhar devias correr.
- Claro que não! Depois chego ofegante.
Nada sedutor.
- Então anda rápido, vá. Um computador não demora assim tanto a reiniciar.
(Vê-se as pernas a tremer)
- Eu imaginava isto com chuva. Assim perde todo o romantismo.
(cheesy)
- Ok. Agora é so reensaiar a frase. Como era mesmo? Eu deveria ter escrito num papel, que raiva. Aquela frase era mesmo boa.
- Vá lá, não sejas parva. É só um telefonema. Liga logo. Não estragues tudo.
- Espera. Arranja melhor o cabelo. Cobre as orelhas. Respira fundo.
(está a chamar)
- Como era mesmo que tínhamos combinado? Abraço ou beijinho?
- Cala-te. Isso é o que menos interessa.

08 febrero 2008

Casa

As palavras-sorriso usam perfume preto e branco, óculos espelhados e umas calças meio duvidosas. São feitas de manteiga, daquela para fazer os biscoitos da Ana Teresa.
São raras de encontrar. Muito bem cotadas no mercado coleccionador.
E lá vem uma covinha, um dente meio escurecido, um ténue inclinar da cabeça.
Valiosas, muito valiosas.
Não deixem que se desgastem. Se as encontrarem guardem-na numa redoma de momentos especiais. Não, corrijo: momentos extravagantes, singulares, esbanjadores. E nesse momento saboreiem o seu gosto a maresia amanhecida com pasta de dentes de hortelã. O seu gosto de banana com leite condensado e massa ao pequeno-almoço. Digam-na com todas as letras e deixem que o momento exclame uma interjeição de felicidade.
Um dia encontrei uma palavra, perdida num meio de um livro para pintar.
Guardei-a.
Ela implora-me por liberdade. Mas é sempre tão difícil quando o nosso filho mais velho sai de casa.
Prometo que não sou pedra, nem diamante valioso.
Mas se fosse médica, seria famosa e quem sabe me convidassem para os Óscares.
Mas assim sendo, vejo-os em casa, com cobertor e pipocas (salgadas).

06 febrero 2008

C

A barriga espremia-se num ranger que incomodava. Pela cabeça passavam filmes de terror e segredo eterno. Por que submeter-me a tamanha humilhação?
Berros de garganta arranhada. Corada de calor interno. Flamejante. Não sabia onde colocar todas as noites de lágrimas e frases atabalhoadas, as manhãs preguiçosas de bolhas que sangram nos pés.
A sensação de impotência. Ela falava, com o seu buço por fazer, da desintegração social dos pobres. Expressão feita. Tão oportuna. Também queria ter um bigode e as sobrancelhas desalinhadas, nunca ter tido namorado e voltar para casa por saudades da família.
Mas passou. Fiquei-me pelo que “pessoalmente, eu acredito” e pus uma roupa confortável. Sentia a sua cabeça a pensar melhor que a minha e as suas escolhas invejavelmente mais acertivas.
Eu era uma amadora.
Dizem que só os números podem ser pares ou ímpares. Mas eu não sou japonesa e sempre me dei melhor com letras. E esta letrinha, todos sabem que é impar.

Conheço uma boa esteticista, se quiseres dou-te a morada.