28 octubre 2007

Vais?

Não era ele.
Nem a maneira como se baixava para me cumprimentar com um beijo na testa.
Não era ele.
Nem as caretas que fazia quando não gostava da comida.
Não era ele nem a sua mania irritante de querer pagar sempre a conta, levar sempre a mochila, conduzir sempre o carro e aconchegar-me no seu abraço.
Acho que era eu.
Com os pés no vidro do carro e o cabelo despenteado. A cantar canções convencionais em ritmos exóticos.

- Vais?
- Então vamos.

Era a maneira como íamos.
A flutuar por cima da vulgaridade.
E agora resta-nos navegar pelos oceanos satelitais. Procurar desesperadamente uma costa. Chorar com o Wilson desbotado.
Não era ele. E agora acho que também não era eu. Talvez tenha sido um erro de cálculo. Um clone que apareceu naquela Fosters à beira mar.

- Vais?
- Queria tanto poder ir também.

26 octubre 2007

minhocas

Tenho um problema.
Um dia acordo assim, e outro acordo coisa e tal.
Um momento estou okay e no próximo nhénhénhé.
Chamo-lhe minhocas.
Esses bichos de léxico divertido, que gosmam as nossas cabeças.
Lentos esses animais. Custam a sair.
Está ali a porta, vai, adeus, não te quero mais ver.
Mas são vaidosas. Gostam de mostrar o seu físico, toda a sua envoltura, a sua pele transpirada, o ar crocante e o seu cheiro de terra apodrecida.
Orgulham-se disso, coitadas.
Sensíveis elas. Não lhes ouses tocar enquanto desfilam a sua marcha territorial. Não as atices.
Quando ficam nervosas expelem água salgada e cuspe acumulado. Dão enxaquecas e pedem lenços de papel.
O melhor é tratar delas com carinho.
As minhocas esticam e fazem crescer. E se tivéssemos centopeias?

24 octubre 2007

naquele dia

Ele é assim. Imprevisível.
Um dia estava em casa e tinha acabado de tirar o pijama.
Ele apareceu.
Disse que estava decidido. Que lá íamos nós em busca de aventuras ciganas.
Eram muitas horas naquele carro emprestado. Que bom, pensei. Mais tempo para conversar. E ali falou-se de tudo.
- Mas eu não gosto dessa música.
E a próxima era pior, e pior, e pior. E lá fomos nós entre fofocas e inutilidades. Entre vidas alheias e memórias reveladoras. É sempre bom conversar enquanto o sol aquece o dia e a água rochosa.
E o assunto nunca faltava. Já não havia carro e a areia entrava pelas dobradiças do corpo e fazia crek crek.
Não havia professores, nem nota final. Não havia inquisição e nem censura e ali , no fim do mundo, podíamos dizer aquilo que quiséssemos.
E depois de um comentário qualquer sobre uma qualquer coisa inútil e insignificante, caímos na risada.
Gargalhadas de lágrimas e dores de barriga. Sorrisos que fazem sangue nos lábios de cieiro e que incomodam os vizinhos de toalha. Rebolamos em pensamentos hilariantes e viajámos pelos comediantes mais conceituados.
E, no fim, entre gargalhadas que rebentavam com as ondas e tentativas desesperadas de respirar, disse:
“Mas o que é que eu faço a um miúdo como tu?”
E ele respondeu, de olhos brilhantes.
“Amas”.

21 octubre 2007

Memórias de Emília, 1936, Monteiro Lobato

"...a vida, Senhor Visconde, é um pisca - pisca.
A gente nasce, isto é, começa a piscar.
Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos - viver é isso.
É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais.
A vida das gentes neste mundo, senhor sabugo, é isso.Um rosário de piscadas.
Cada pisco é um dia.
pisca e mama;
pisca e anda;
pisca e brinca;
pisca e estuda;
pisca e ama;
pisca e cria filhos;
pisca e geme os reumatismos;
por fim, pisca pela última vez e morre.
- E depois que morre - perguntou o Visconde.
- Depois que morre, vira hipótese. É ou não é?"

18 octubre 2007

Rumo a leste

Há coisas penduradas no meu armário.
São como precipícios materiais, abismos consumistas, pontos de interrogação por concluir.
Elas estão ali, suspensas, como se eternamente à espera de um apoio.
De cabeça para baixo, com os pés colados no tecto o cabelo fica despenteado. Ninguém gosta de parecer desleixada. A roupa vai caindo e o corpo se mostrando arrepiado, trémulo, inerte e liso neste mapa assustado de sonhos.
Os cabides servem para isso.
Suspendem os objectos e confrontam-no com o pior da vida.
Todos nós temos vertigens. Todos temos mais do que cinco quilos de sangue a girar pelo corpo.
É inconsolável abrir o armário. A tosse vem com o pó dos objectos esquecidos e as lágrimas pastosas caem por cima das promessas e alvos.
Tudo ali, pendurado. Á espera de um juízo final.
Desfazer-se em cinzas. Encontrar um dono que o pegue ao colo e o leve a passear. Talvez em direcção a leste.

17 octubre 2007

chocolate

Somos todos estrangeiros, forasteiros, fugitivos de vidas monótonas.
Somos errantes, cobardes desta agonia simplificante.
Talvez todos não. Apenas aqueles que vêm na odisseia uma possibilidade de vida. Aqueles que nunca acham que chegou a hora.
Caracóis itinerantes e curiosos, cujas barreiras são o horizonte inatingível.
Começar de novo está tatuado no nosso corpo, é expelido, pingante, dos nossos poros.
O primeiro dia, o primeiro passo, a primeira letra da página em branco.
E aquela mulher, de olhos de vidro, que investe em nós partículas do seu corpo. Que acredita (e não que diz acreditar) que um dia também nós doaremos os olhos a uma causa.
Ao apagar, limpar, seleccionar. Ao enviar, ver e controlar para que nada escape pela visão fixa de um órgão perdido. E no fim, todos vão criticar. Editar, melhorar, corrigir.
Mas ela só tem um olho. E para os seus óculos a vida nunca foi doce.

14 octubre 2007

cantinho de mundo

As pessoas crescidas já não vão à escola, nem têm trabalhos de casa.
Elas sabem que não se pode ir trabalhar de mini-saia nem com as unhas pintadas de laranja, que os decotes não são aconselháveis e que as gargalhadas desconcentram os colegas.
Os grandes falam baixo e dizem bom dia, sorriem e disfarçam, dizem umas mentirinhas para fugir ao trabalho.
Os crescidos gostam das crianças, fazem caretas e vozes engraçadas, beijam, agarram, amassam aquelas gorduras cheirosas.
E são tão superiores a elas.
Qualquer reacção mais torta, mais espontânea, é reprovada. Porque parecer uma criança, não é lá muito bom.
Outro dia descobri uma porta secreta. Fui espreitar porque cheirava a algodão doce e tangerinas. E encontrei. Ali dava para subir às árvores, cair, chorar e ter sempre alguém que dissesse que iria ficar tudo bem. Dava para me sujar, despentear, fazer caretas e cantar diparatadamente. Ali não havia o “tens de” nem o “não me desiludas”. Seus bichos malvados.
E ali, naquele cantinho de mundo, podia fazer birra e beicinho, podia gritar e chorar.
Porque os homens às vezes são ratos.
Escondem-se por trás do tailleur e do fato completo.
E perguntam às inocentes crianças “mas tens quantos anos afinal?”

11 octubre 2007

apagada

As pessoas têm luzes que iluminam as suas cabeças. Têm fechos que ofuscam e rebatem nos espelhos à sua volta.
Por vezes essa luz funde, acaba, se extingue no terreno da convivência diária.
Não tens tempo de respirar.
Faz, escreve, articula, acontece, opina pergunta.
Tens de ser genial.
Sai tudo tão fácil e espontâneo.
E sentes-te a minguar. Cada vez menor e menos apta. Cada vez mais desistente e perto da exaustão.
Dizem que já não tens a luz que costumavas ter. Que não consegues mantê-la acordada.
Não faças caretas. Nota-se tão bem.
Nunca fui boa de fingir.

08 octubre 2007

"provavelmente"?

Que raio de ideia essa tua.
Estanhos os rumos que a vida tomam.
Éramos tão fresquinhas e inocentes. Tão idealistas e sonhadoras.
Ela pequena e frágil. Eu excêntrica e hiperactiva.
Mas lá estava ela todos os dias no comboio. No carro. Nos auditórios. Nas horas do almoço. Na hemeroteca. Na esplanada amarela.
Nos cafés. Na praia. Nos restaurantes. Nos concertos. Na baixa. No meu caderno. No telemóvel. Nas notícias do jornal. Nos cartões postais da viagem. Na minha Neverland.
No meu quarto.
Lá estava ela na minha vida.
Foi entrando devagarinho e partilhando das minhas indignações. Ensinou-me a ser mais tolerante e comedida. Menos veneno e mais perfume. Ela nunca diz mal de ninguém.
Mostrou-me como se vê as coisas com bons olhos, como se acredita nos sonhos e num futuro melhor. Como se luta e se conquista.
E quando voltei ao mundo foi a ela que telefonei.
E foi ela que me arrancou uma lágrima cruel ao desligar o telefone frustrado.
Foi ela que estava lá a rir-se da minha racionalidade estúpida. A incentivar um mundo de leite-creme derretido, um futuro possível, um sonho quase real.
E é a opinião dela que conta quando as coisas apertam. E é dela que tem de sair o “está óptimo, vais conseguir”. E nessa altura quase acredito que seja verdade.
E, não, eu não sou lésbica.
Era ela que sabia o que eu tinha almoçado e o que eu trazia vestido. Que sabia na ponta da língua que sou chata e rabugenta e que fervo em pouca água. E que discuto e esperneio e grito. Mas não se importava, porque não vale a pena. Ela também sabe que não vou mudar isso.
E não posso ter saudades nem dizer coisas queridas. Porque os amigos completam-se e essa parte fica para ela.
Ela um dia (triste esse dia) escreveu-me uma carta. E nessa altura descobri que não há mais ninguém no seu lugar. E eu vou só fazer uma correcção. Porque não podia fazer um post sem resmungar. Pega naquela tua carta e tira a palavra “provavelmente”. A tua prima não se vai importar. São tipos de amigas diferentes.
A minha mãe diz que eu só tenho amigos rapazes. Mas ela queria ser uma princesa quando era pequena.
Tornou-se biscoita e salsicha fresca. Parideira e meloa.
E para quem não sabe, aqui vai um segredo.
Ela odeia que a belisquem. E é tão giro vê-la chateada.

05 octubre 2007

Sim! Sim? Sim.

Quando te sentires vazio, bebe água, isso deve manter-te cheio por uns tempos.
Às vezes acho que tenho buracos.
Embriagada no mundo das letras e das frases simples, das histórias e dos personagens. Na missão e no dever.
Entregue, como criança mimada, a este lugar onde as pessoas insultam a gramática, aterrorizam a cultura, matam à facada a ambição.
Onde tudo é baixo e tudo é pouco. Onde querem mais e mais dos medianos de saltos altos.
Abandonada neste emaranhado de emoções e sensações físicas, de rolos de pensamento sem fim, de tremeliques e piripaques ao sabor dos orçamentos.
E um sim é tudo o que eu espero a cada vez que me queixo das costas, que resmungo com o tocar do despertador, que grito com o empregado público, que degluto os alimentos tristes e deprimidos.
Os índios civilizados confundem o “sim” com o não e o talvez. A comunicação torna-se mais difícil.
Só espero que isto tudo não seja uma grande partida.

01 octubre 2007

o Trigésimo

Hoje vou contar uma história.
Um dia conheci um rapaz, ops, não foi um, foram 30.
O primeiro era divertido, o segundo eu achava um pouco infantil. O terceiro e o quarto usavam roupas largas e andavam de skate. O quinto era gordo e o sexto roçava a obesidade. O sétimo era bastante inteligente e o oitavo era tão arrogante. O nono passava horas a conversar à porta da minha casa e o décimo nunca se esquecia do meu aniversário. O 11º sabia que em jornalismo a partir do 11 se escreve por números. O 12º desenhava tão bem e desperdiçava tanto as suas capacidades. O 13º cresceu. O 14º mostrou-se interessado nos meus interesses e o 15º ria-se das minhas histórias. O 16º e o 17º eram tão esquisitos e cheios de tiques. O 18º nunca desistia. O 19º dizia que com calções não se pode atar os sapatos e o 20º deitava-se sempre na areia.
O 21º era tão carinhoso. O 22º e o 23º andavam sempre juntos, um adorava música e cantava baixinho, o outro bebia muito e fazia serenatas para a vizinha inglesa. Dizem que o 24º era um pouco banana mas ele defende-se dizendo que estava apenas apaixonado. O 25º gostava de gelatina amarela. O 27º ralhava e o 28º estimulava-me a ser melhor. O 29º, coitado, ficava antes do 30º e então sempre teve medo do seu futuro.
Esse tal de Trigésimo (os nomes próprios são por extenso) foi o meu preferido. Se calhar sou uma criança iludida que acha que o último presente é sempre o melhor. Mas o Trigésimo foi um presente inesperado. Ele veio muito bem embrulhado, cheio de fitas de laçarotes. Entregaram-no na minha casa com um casaco de couro castanho e um carro sem o espelho direito. Era como aquele presente que vamos abrindo e abrindo até encontrar a prenda a sério. Tinha um embrulho bonito e eu fiquei interessada. Fui me aventurando e encontrei uns papeis rasgados e umas fitas-cola difíceis de arrancar.
Insisti.
Não foi fácil abrir aquele presente. Ameacei deixá-lo e desistir. Quem foi a pessoa que teve a ideia de o embrulhar tão bem?
Mas ainda bem. Senão já teriam o descoberto, posto em leilão e licitado um preço muito mais alto do que o que posso pagar.
Era baratinho aquele presente. Era daqueles simples e úteis. Inteligente esse tal presente. Foi conhecendo-me e tornando-se indispensável. Aparecia em casa quando estava cansada e ajudava-me a adormecer, deixava-me escolher os caminhos e impunha-me sempre a sua música. Ele começou a meter-se no meu bolso e na minha mala, nos meus ténis sujos e no meu top colorido. Enfiou-se no autocarro cheio a segurar as sacolas das senhoras e nas aulas de filosofia enquanto discutia politica. Ele era o computador e era o livro que estava a ler, era a cor do verniz e a fruta da sobremesa. Meteu-se na minha vida e infiltrou-se no meu perfume e nos brincos que usava, nos amigos que escolhia e nos objectivos que traçava. Mas o pequeno presente, que é tão quietinho e que fala pouco, virou-se para mim e disse: um dia vou materializar-me. Então eu acho que vou ficar à espera, porque depois de tanto trabalho estou um pouco cansada para voltar a desembrulhar outro primeiro.