24 marzo 2008

Sr. Carlos

De volta ao pacato mundo cinzento. De volta ao negro véu que envolve as horas silenciosas.
Os dias passam-se como fotografia emoldurada. A sombra escurece o retrato. Sempre o mesmo retrato. Sempre.
E enquanto os minutos espreguiçam e as migalhas de bolacha água e sal se espalham, as recordações voam em imagens de ressacas passadas.
Uma bomba de gasolina e uma noite fria. Um beijo gelado em rua íngreme. Gritos de insinuações prometidas que soam desafinados a bigodes desconhecidos.
Há sempre um senhor Carlos na nossa vida. Aquele bigode e o dizer amigável. Que venha mais uma rodada. E outra. E outra. E ele vai ajeitando a comida no prato. Mais pão. Sinto-me tonta.
A mesa pinga alegria derramada, range a dor de barriga de gargalhadas cúmplices.
Já não precisamos de jogos, porque agora as danças iniciam-se de costas e terminam com um turbilhão de risadas. Com um grito de reprovação, um olhar de desprezo censurado.
E sem saber como, ou onde começou, quem teve a ideia ou quem deveria ficar com os louros, sentimos que afinal é bom voltar para casa.
Mas para isso, é preciso antes partir.

19 marzo 2008

O nosso prêmio Nobel

Dizem que ele vai receber o prêmio Nobel, que é um geniozinho, um intelectual reprimido, o futuro ministro da saúde.
Isso é para os outros. Para mim ele é o companheiro de viagens intermináveis de ônibus, de almoços no PF da esquina, de queijo coalho assado na brasa.
É desligado, atrapalhado, desengonçado. É aquela pessoa com quem podemos ficar durante três horas conversando sobre nada e no final concluir que tivemos uma conversa instrutiva.
Ele é o cara te que liga e diz “vamos no cinema?”, “quando?” pergunto eu, já com a agenda na mão “Agora, vou ai te pegar”.
E depois disso, se segue uma noite de conversa fiada, cinema e um barzinho qualquer. E no dia seguinte o celular toca: “Pô Má, são 9 da manhã e você ainda não acordou?”
Acho que é isso que faz dele o irmão promissor e de mim a “filha adotada”.

18 marzo 2008

Este mundo tão pequenino

Vivo num labirinto claustrofóbico de tectos altos e janelas compridas.
Sou anã em busca de um pé de feijão, de uma janela de onde possa laçar as minhas tranças.
Dizem-me para usar saltos, plataformas, riscas verticais. Nada funciona. Existem também aqueles tratamentos que se fazem às crianças. Mas já passei dessa idade. É pena.
Outro dia lembrei-me que talvez, se eu comesse uma dose cavalar de fermento e me enfiasse no forno, podia ser que aumentasse.
O Joãzinho e a Mariazinha só cresceram para os lados. Mas cresceram. É isso que importa. Alguém conhece uma casa de doces com uma bruxa avarenta?
Sinto-me formiga à volta do açúcar, melga a sugar o sangue doce. Preciso crescer.
Extravasar o mundo, bater com a cabeça no tecto, andar corcunda de tanto olhar para baixo.
Logo eu que sempre fui a mais alta da turma.

14 marzo 2008

ressequida

Há caminhos de terra que me percorrem o rosto. As estradas tornam-se mais fundas, os olhos mais chatos, a cabeça se inclina em um desistir pendurado.
Sou folha seca em árvore perene. Resisto.
Quero ir mais longe e superar o que está escrito. Insisto.
A minha vida é um soluçar de bons momentos. É um dicionário de dúvidas, de uma felicidade roubada nas crises de adolescência. Porque nada é bom demais. Bom o suficiente.
Os soluços sufocam-me o ar. Rodopio de tontura em busca de uma linha exacta que há tanto tempo perdi. Sou da estabilidade, do compasso de círculos perfeitos.
Agora vivo aos gemidos. Sou CD com partículas de poeira. Limpa-a que voltará a sinfonia harmónica. As melhores músicas são as que se aproximam da ópera.
O rosto seca com a terra dos anos. Sou diva ressequida dos meses passados em dias de horas lentas e preocupadas. De sono fugido, de ânsias engolidas.
Repudiam-me as felicidades gratuitas, as vidas fáceis de botas lambidas. Quero vomitar os que não resistem, os que não se impõem, os que se deixam beijar as mãos.
Precoce. Prematura. Sim, vou morrer aos quarenta.
Mas antes disso, preciso de um lifting.

10 marzo 2008

Aih, o mundo fantástico

Um carro, uma caneta e uma guitarra. Daquelas portáteis, com desenhos camuflados e fios soltos. Éramos mais rápidos que o mundo. Fazíamo-lo correr, apressar-se nas estradas perdidas, no almoço a horas tardias e no supermercado de uvas sem grainha. Mas o mundo é preguiçoso, não gosta de esforço. Castigou-nos com tomates assassinos.
Daqueles que fazem as tomadas parecerem portas de impressão visual e o tambor um fiel amigo do bambi.
Vieram os diários de letras macarrónicas e conteúdo ilegível, a sirene dos bombeiros e as panelas sujas. O tomate acabou esmagado num molho de natas com mostarda e limão. Pouco apetitoso.
Mas o mundo é forte e poderoso e não se fica pelas leguminosas. Conhece a sociedade em Rede, já diria o mestre de CC. Manda então mensagens que nos fazem rir de pânico, passar manhãs acordadas num respirar profundo de pesadelos adormecidos. O telefone toca. One missed call. Vem o rebuçado vermelho e a música fúnebre.
Vamos morrer. Ninguém aguenta tantas horas de frio e tortura. De inchaços e ligaduras. De promessas impossíveis e pensamentos irrealizáveis.
E foi então que o mundo percebeu. Estávamos presos ao nosso corpo. Este era o pior castigo.
Começou a matar japoneses de três em três minutos.
Mas essa parte eu já não vi. As legendas eram em inglês. O relógio marcava 3 a.m. Não é apenas o mundo que é preguiçoso.

05 marzo 2008

Demais

Não te vás embora.
Que mania de abandonar as pessoas. Fugir como se de nada se tratasse.
Sabes qual é o teu problema? Irritas-me. Criança.
Chegas como se nada fosse. Bates à minha porta, olhas-me com sorriso de gelados e castelos. Invades a rotina com o “prim-pim” do telemóvel e o café a meio da tarde. E se vou à farmácia, lá estás tu. E se vou almoçar, tu mais uma vez. Larga-me. Deixa-me viver à minha maneira.
Não faças isto assim, vai por aquele caminho, porque é que ainda fizeste aquilo? Não te esqueças do remédio. Obvio que ainda não lavaste o carro. Desaparece.
Cala-te uma vez na vida! Agora quem fala sou eu.
Não gosto que te vás embora. Não és a rainha do universo.
Que mania de lapidar o destino.
Egoísta.
E nem pensaste em mim. Eu sei que não pensaste.
E eu? Vou ficar aqui. Onde não há mails porque nada se passa, onde não há diversão porque já nem gosto deles tanto assim.
Culpa tua.
Levaste-me para dentro do teu mundinho perfeito. De diversão sem álcool, de risadas sem sexo, de cafés, lanches e idas à praia sem surf.
E agora que já me estava a habituar. Já sabia os nomes, os sítios e as historias. Agora que eles até me achavam piada.
Agora vais embora. E o pior. Finges que não vais. Fazes planos para Abril, Maio, Junho. Fazes planos para Dezembro e para 2010.
Cínica. Falsa.
E tudo isto, para dizer que tenho um problema.
É que gosto de ti. Demais.
"fingir que está tudo bem: o corpo rasgado e vestido com roupa passada a ferro, rastos de chamas dentro do corpo, gritos desesperados sob as conversas: fingir que está tudo bem: olhas-me e só tu sabes: na rua onde os nossos olhares se encontram é noite: as pessoas não imaginam: são tão ridículas as pessoas, tão desprezíveis: as pessoas falam e não imaginam: nós olhamo-nos: fingir que está tudo bem: o sangue a ferver sob a pele igual aos dias antes de tudo, tempestades de medo nos lábios a sorrir: será que vou morrer?, pergunto dentro de mim: será que vou morrer?, olhas-me e só tu sabes: ferros em brasa, fogo, silêncio e chuva que não se pode dizer: amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um oceano que nos queima, um incêndio que nos afoga."

José Luis Peixoto

03 marzo 2008

Mormon no elevador

As palavras fogem-me. Efémeras.
Falo, qual rádio de informação inútil. Conto e rio das minhas aventuras de nada. Falo e não paro até a garganta secar, porque existe ainda tanto por dizer. Quero contar que acordei despenteada e tenho uma borbulha nova no rosto, que vesti os ténis vermelhos porque os castanhos me faziam bolhas nos pés. Quero contar tudo, para que não se perca nada.
Quero contar o olhar apertado de covinhas, aquele sussurro inesperado ao ouvido. Quero conseguir descrever na perfeição o abraço que encaixa e o silêncio de sorrisos rasgados. Mas eu sou escudo. Escudo de traumas pisados e Internet com dor de barriga. A plenitude nega-se a cada momento. Sou mormon dentro do elevador.
E o pensamento arrasta-se para futuros longínquos onde o nós é um espatifado de eus e tus. Seguem-se as frases sem sentido, as dúvidas existenciais de quem esperou demais.
Esperou mais do que era humanamente possível. Ansiou uma afinação heróica, uma orquestra que se regia sem maestro. E agora a espera culmina num amontoado de sentimentos imperfeitos, com o nariz grande e o couro cabeludo que descama. Há o amigo que telefonou e o jantar de hoje à noite.
E existimos nós, e os hematomas dos beliscões.
Já não são precisos. Isto é mais do que real.