30 agosto 2007

Um dia

Era uma vez um pacote de açúcar.
Ele tem uma forma estranha e um valor impagável, é procurado no mercado negro, nos aeroportos e esquadras da polícia. Mas eu escondi-o bem. Muito bem.
Foi uma viagem difícil, sempre a suspeitarem de mim, a cheirarem-me um odor adocicado. Perguntas, muitas perguntas. Interrogatórios infindáveis, lágrimas de angústia apertada.
Era impossível fintar o pensamento. O pacote aparecia escondido nos sonhos de cinco minutos, acordava com as costas a arder em dor e pensava que tudo acabaria bem. Mas a viagem parecia contra mim. Os filmes tinham mensagens subliminares escondidas em cada diálogo, o jornal escrevia o meu crime em todas as páginas, o meu corpo e a almofada cheiravam a noites mal dormidas de tráfico açucarado.
Ás vezes tinha medo que descobrissem o meu segredo. Sou uma rapariga correcta que não se pode dar ao luxo de fazer coisas irracionais. Contrabandear pacotes de açúcar é crime, dá prisão. Fui muito influenciável, eu sei. Ele chegou-me com os seus olhinhos pequeninos (tens de abri-los quando te ris), com o seu sorriso fechado, discurso manso e pegajoso. Foi impossível resistir. Pareceu tão espontâneo, tão puro e simples, mas lá no fundo foi uma proposta cruel, eu sei. Foi propositada. Querias fazer-me enveredar pela vida do dinheiro fácil, dos sentimentos exacerbados, dos impulsos incontroláveis.
E agora aqui estou, com o produto do contrabando.
Ainda está escondido.
Tenho de libertá-lo e não consigo.
Sou uma criminosa. Mas estou a pensar ficar com a mercadoria para mim. Pelo menos por mais algum tempo.

29 agosto 2007

Aqui...

Não há céu azul mas o cinzento faz trinta graus. As ruas são grandes, esburacadas, e cheias de camiões. É mais seguro atravessar no meio dos carros do que na passadeira.
Nunca se pode andar “distraída” e isso é tão óbvio que se nos distrairmos a culpa é nossa.
Não há ar condicionado mas não se pode andar de vidros abertos. A bolsa fica em casa e o dinheiro (indispensável) vai no bolso (que curiosamente não existe nas calças femininas).
Não se pode chamar a atenção (“vai ser difícil, não devias estar tão bronzeada”)
Toda a gente diz que deveria arranjar um namorado brasileiro para satisfazer a vontade da minha mãe e eu sei que se o fizer ela vai ter saudades dos portugueses.
Eu não quero arranjar namorados.
Sinto a falta daí e aí sentia tanta falta de fugir.
É pior do que aí mas mesmo assim vim para aqui com a ilusão de que aqui fosse melhor do que aí.
Os filmes são dobrados e eu adormeço a vê-los.
A vida começa as 7 da manhã.
Ando com um pacote de açúcar na mala.
Há família e há também problemas familiares.
Diz-se rotatória e não há prioridade. Os camiões podem andar em contra mão.
O motorista do autocarro conversa e olha para trás enquanto fala.
A culpa é sempre do outro (e normalmente do governo).
Há muitas notícias sobre os Estados Unidos e isso dá-me saudade.
Tenho um irmão mais novo e já não me lembrava o que era andar à porrada e jogar playstation.
Aqui sinto falta do teletransporte e prometo que na próxima semana o discurso será mais entusiasmante.

28 agosto 2007

Fico

Se não te fizer muita diferença, fica. Só mais um bocadinho.
É o tempo da vida mudar, do rumo se estabelecer, do mundo aprender a engatinhar.
Um bocadinho é muito menos do que as horas penosas em que os minutos se contavam em batidas decrescentes e em que a música soava a cada hora, ou assim.
Não é tão bonito como o jantar na mesa de madeira, o filme com sussurros de arrepios ou os pés a entrelaçarem em cócegas e risadas.
Não é tão imenso como um abraço cúmplice, um olhar apertado, um presente desentendido.
É menos embaraçoso do que dançar na rua, cantar na varanda, ouvir uma última vez as tuas mãos a conversar baixinho com as minhas.
Mas se não te fizer diferença, não te vás embora depois do café da manhã. Fica para o almoço. Prometo que te faço uma comida cheia de hidratos de carbono. E se não gostares do meu tempero levo-te ao restaurante. Pago eu, não te preocupes.
Mas fica só mais umas horas.
Pega-me ao colo para eu espernear, diz piadas para que eu faça quarenta e seis não-sorrisos forçados, dança e obriga-me a dançar.
E durante o almoço podemos conversar sobre coisas quotidianas. Sobre o filme de ontem, a noite de hoje, os dias e dias e meses e meses de resistir derretido.
E se não te fizer mesmo nenhuma mossa, fica para o café.
Vai deixando-te ficar e embalar pelos momentos de gargalhadas improvisadas e continua a ensinar-me a viver o presente, sem agenda, sem relógio, sem esquemas e tabelas.
Desculpa se não tenho nada para te dar em troca. Mas posso oferecer o jantar.
Isto é, se não te importares muito de ficar mais um pouco.

21 agosto 2007

Lady in Blue

O mar estava em reboliço. Vagas e crianças histéricas faziam uma sinfonia enjoada que derretia o sol escaldante. Eram ondas e ondas de libertação suprema.
Nadámos até ilhas desertas, almoçámos manjares dos Deuses, rimos e saltamos na velocidade inumana de plásticos flutuantes.
Partilhámos planos de futuro, fugimos dos olhares inquisidores, fizemos juras de amizade eterna.
A cabeça girou ao som da música indigente, o pé ficou descalço e sujou-se de areia nocturna. Caímos e levantá-mo-nos, corremos e desacelerámos, brincámos às celebridades e na cama, as lágrimas voltaram a cair.
Mas quando o dia nasce de novo, vem com ele o sorriso da união. Somos um só. Sempre fomos, desde o início.
Somos família de sangue fictício. Somos olhares e diversão garantida.
Somos gritos de encorajamento, somos viagens a quilómetros alucinantes, somos partidas e somos preguiça.
Para fugir do vendaval da praia, escondemo-nos em tostas de queijos e enchidos, em eleições americanas e estrelas cadentes. Porque as férias são assim. Há um pouco de tudo.

20 agosto 2007

Sem relógio

Chega de lamechice e textos de amor.
Chega de discursos apaixonados e corações a voarem pelo ar.
Mas hoje. Hoje é um dia especial.
Passou-se tudo num instante.
Chegaste de carro novo, como quem não quer a coisa. Gravaste músicas invulgares, contaste histórias desconhecidas. E foste tu, mais uma vez tu.
De cara para o mar, com o ranger da madeira.Com vozes e sussurros que ultrapassavam paredes, com a preguiça solarenga e o banho que queimava os poros. Contigo e sem relógio.
Dizes que não gostas de doces mas adoras chocolates. Dizes que não vives sem música e cantas sempre tão baixinho. Nunca queres beber mas não recusas desafios. Dizes que está sempre tudo bem e revelas-te tão encimado. Dizes que vai ser fácil mas os teus olhos não sabem mentir. Dizes que dizes pouco e, afinal, dizes sempre tanto.
As peles colam e partilham perfumes.
Os olhares contêm palavras.
Os toques são livros inteiros de ternura.
Os dias sucedem-se sem contador. São momentos e momentos e momentos.
Ás vezes converso com o destino.
Em tantos anos acabámos por nos tornar muito próximos.
Simpático, afável, ternurento, resolveu pôr-me à prova.
E eu também não recuso desafios.
Vamos até ao limite, até ao último segundo da vida terrestre, até ao limiar da dor humana.
Fugimos e fugiremos outra vez. Porque a nossa vida é assim: sem relógio.

06 agosto 2007

só uma magiazinha?

Não gosto de pessoas gordas. Nunca gostei. Elas ocupam espaço. Muito espaço. Demasiado espaço.
Espalhaste-te na minha vida e correste com a rotina. Refizeste as fronteiras e gritaste-me baixinho.
És assim. Vens, imprevisivelmente, com pantufas de algodão e sorrisos tímidos. Tocas o meu telefone e comentas as minhas manias.
Irritas-me.
Eu grito e esperneio, reclamo, faço rugas na cara, cultivo cabelos brancos de velhice antecipada. E respondes-me com ventinho e abraços, com a tua mão a amaciar a minha pele. E isso deixa-me ainda mais nervosa.
Mas agora fazes-me falta.
Há bocados do meu mundo por preencher. O teu espaço é vácuo e nem os feiticeiros desviam-me o pensamento.
Dói-me a cicatriz na testa e o raio borbulha-me a ardência. Eles lutam, gritam bruxarias estrangeiras e eu que só queria uma magiazinha barata que congelasse, por alguns dias, todos os relógios do mundo.

03 agosto 2007

é a revolução

Dizem que “queixar” é um mau verbo. Dizem por ai que isso de reclamar, protestar, contestar e resistir, é uma coisa reprovável.
Pois eu não concordo.
Sobem-me os tremores pelos caminhos dérmicos, arrepiam-se os meus pelos e enlagrimam-se os olhos. O calor apodera-se do meu bom senso e começo a achar que os poucos decibéis permitidos pela lei são inaudíveis.
Mexem-se-me as mãos e os pés e os olhos e os cabelos. Gesticulo e articulo um discurso corrido e apressado de protestos e reivindicações.
Quero o mundo como eu quero.
Não sou rebelde nem contestatária. Sou eu.
E quero justiça.
Quero justiça pela comida que levou horas a ser preparada e vem mal servida no prato. Quero justiça pelos sorrisos que deveriam sair das bocas dos empregados.
Quero justiça pelas moedas que ficam a mais nos caixas.
Quero justiça pelas palavras amáveis que queriam sair e que são substituídas por discursos sexistas.
Quero justiça pelo direito ao silêncio que é quebrado pelo grito hormonal e sedento de trabalhadores empoeirados.
Quero justiça pela disponibilidade da função-publica-das-nove-as-cinco-e-às-quinze-para-as-cinco-já-está-tudo-fechado.
Quero justiça pela quantidade de árvores que poderia ser poupada nas burocracias inúteis.
E agora dizem-me para parar de me queixar. E eu não quero.
E queixo-me por causa disso.

02 agosto 2007

melga

Tenho zumbidos no quarto. Há barulhos nos meus ouvidos que não me deixam dormir, que não me deixam estar acordada. Escondo-me por baixo do cobertor e enrolo-me com os cabelos na almofada perfumada. E o zumbido continua.
Quero abrir os olhos e triturar o som com as pupilas, mas as pestanas estão gosmentas e têm um liquido solidificado que não as deixa abrir.
Preciso de um pesticida forte, ou de um spray que me desatormente o sono. Quero voar nos lençóis cor-de-rosas e dormir com sorrisos e suspiros
Mas o rumor continua. Esbato-me e contorço-me num turbilhão de pensamentos maus. Batifes, Malandros, Brejeiros. Voltem os sonhos bons. Vão-se embora insectos detestáveis.