Eram estranhos. Estranhos unidos pelo desconhecido.
Em cada feição se notavam horas de preparativos frente ao espelho, noite dormida aos sobressaltos com formigas no estômago, vezes e vezes da mesma frase pronunciada: “A ver”.
“A ver” como será a viagem, que tal os companheiros, os prémios, a música e a saída à noite. Um “a ver” de poucas expectativas, de espera desinteressada. Mas em todas as letras pronunciadas se encontrava uma certeza por detrás dos olhos ainda tímidos: queriam “passa-lo bem”.
E de bem em bem, lá o foram passando. Pelo jantar de cidra e pelo pub de música espanhola, pelos segredos confessados a desconhecidos, as traições, os desamores, a vida contada em altos decibéis.
Dividiram o carro, o copo, o quarto, as criticas de olhares e bocas caladas.
Horas depois, escassas horas depois, já não se sentiam estranhos. Não viram o príncipe, a Letizia ou a Ingrid Betancourt, mas afinal isso não importava nada.
Porque já não eram estranhos e tinham-no passado bem.
Muito bem.
30 octubre 2008
27 octubre 2008
Play
Faltam poucas horas para que o relógio volte, outra vez, a funcionar. E há ainda muito que fazer.
Isto porque houve um segredo que não te contei. Desculpa.
Sim, foste usado.
Captei o teu melhor ângulo, roubei-te um pedaço de cabelo, anotei o teu prato preferido e aquela expressão que estás sempre a dizer.
Xis.
Pintei-te vários cenários, vi-te a moveres-te em cada um deles. A interagir com todos os personagens naquela tua maneira de falar à desenho animado.
“estava en el chano”, disseste. Eu decorei.
Brinquei contigo como fantoche de peça infantil. Faz assim, olha para ali, como reages a este estímulo?
Estudei-te.
E agora tenho poucas horas para juntar todos os teus pedaços, aqueles que tenho vindo a roubar, e monta-los numa sequência perfeita que possa ver vezes infinitas sem nunca ficar enjoada.
Vou realizar-te num filme, talvez uma pequena curta-metragem. Contrapor os teus melhores lados com aquela cara-careta que fazes quando te zangas. Vais andar pelo mundo, cantar e gargalhar com os teus dentes meio encavalitados.
Vou fixar-me naquela minha pinta preferida, no jeito do cabelo que não se desfaz, no olhar que encontrei em ti quando me vias dormir.
A banda sonora, essa já conheces de cor.
Desculpa se fiz algum erro técnico, se te iluminei mal em alguma cena, se não escrevi um diálogo claro.
É que eu às vezes sou meio desajeitada, tu sabes.
Play.
Isto porque houve um segredo que não te contei. Desculpa.
Sim, foste usado.
Captei o teu melhor ângulo, roubei-te um pedaço de cabelo, anotei o teu prato preferido e aquela expressão que estás sempre a dizer.
Xis.
Pintei-te vários cenários, vi-te a moveres-te em cada um deles. A interagir com todos os personagens naquela tua maneira de falar à desenho animado.
“estava en el chano”, disseste. Eu decorei.
Brinquei contigo como fantoche de peça infantil. Faz assim, olha para ali, como reages a este estímulo?
Estudei-te.
E agora tenho poucas horas para juntar todos os teus pedaços, aqueles que tenho vindo a roubar, e monta-los numa sequência perfeita que possa ver vezes infinitas sem nunca ficar enjoada.
Vou realizar-te num filme, talvez uma pequena curta-metragem. Contrapor os teus melhores lados com aquela cara-careta que fazes quando te zangas. Vais andar pelo mundo, cantar e gargalhar com os teus dentes meio encavalitados.
Vou fixar-me naquela minha pinta preferida, no jeito do cabelo que não se desfaz, no olhar que encontrei em ti quando me vias dormir.
A banda sonora, essa já conheces de cor.
Desculpa se fiz algum erro técnico, se te iluminei mal em alguma cena, se não escrevi um diálogo claro.
É que eu às vezes sou meio desajeitada, tu sabes.
Play.
20 octubre 2008
Normalzinha
Ela estava diferente. Diferentezinha. Já não se sentia aquela menina de tempos atrás.
Foi-se-lhe o sorriso gracioso, os olhos que escorriam paixão. Perdeu a determinação de mudar o mundo. O cabelo cada vez mais desalinhado, as roupas desbotadas.
Sentia-se normal. Normalzinha. Sem nada que lhe valesse o olhar, o suspiro, o comentário. Era como se tivesse perdido o encanto de outrora, a popularidade dos rejeitados, a garra dos que querem mais.
Deixava-se levar pela vida. Levianamente. Ia vivendo no embalo do dia-a-dia, sem grandes motivos, grandes histórias. Procurava o seu lugar.
Causa perdida.
E fazia-lhe então a mais desinteressante das perguntas: porque ainda gostas de mim, afinal?
Desinteressantezinha.
Foi-se-lhe o sorriso gracioso, os olhos que escorriam paixão. Perdeu a determinação de mudar o mundo. O cabelo cada vez mais desalinhado, as roupas desbotadas.
Sentia-se normal. Normalzinha. Sem nada que lhe valesse o olhar, o suspiro, o comentário. Era como se tivesse perdido o encanto de outrora, a popularidade dos rejeitados, a garra dos que querem mais.
Deixava-se levar pela vida. Levianamente. Ia vivendo no embalo do dia-a-dia, sem grandes motivos, grandes histórias. Procurava o seu lugar.
Causa perdida.
E fazia-lhe então a mais desinteressante das perguntas: porque ainda gostas de mim, afinal?
Desinteressantezinha.
12 octubre 2008
Pedinchice
Já te pedi tudo. Já te pedi demais.
Pedi-te para vir, para ficar e para ir. Para fazer, para desfazer e refazer.
E tu foste fazendo. Indo e ficando.
Foi então que te disse que fazias demais. Que não fosses tão obediente.
Rebelaste-te e isso aborreceu-me.
E tu desfizeste-o.
Disse que não te queria, que te queria demais. Que já não aguentava e que contigo, de mãos entrelaçadas, poderíamos ser um nós para sempre.
Mas depois neguei-o.
E tu aceitas-me as mentiras, engoliste-as, vomitaste-as, quando necessário.
Falei-te de amor, e os teus olhos brilharam. Em seguida desconversei e fingiste não conhecer o tema.
E nessa altura reclamei. Que não te armasses em homem perfeito que eu não engoliria essa história.
Desarmaste-te.
Seguiste na tua, a meu lado.
E eu na minha, procurando um lado para estar.
Logo encontrei um lado. Era o esquerdo.
Mas nessa altura já estavas tu muito longe.
E foi então que me chamei de pedinchona.
Tu riste-te.
Mas tinha de pedir, só uma última coisa.
Fica, disse.
E tu ficaste.
Agora acho que já te pedi demais. Que te dei de menos.
E peço-te, apesar de não ter mais crédito, que, de uma vez por todas,
Sejas tu agora a pedir.
Pedi-te para vir, para ficar e para ir. Para fazer, para desfazer e refazer.
E tu foste fazendo. Indo e ficando.
Foi então que te disse que fazias demais. Que não fosses tão obediente.
Rebelaste-te e isso aborreceu-me.
E tu desfizeste-o.
Disse que não te queria, que te queria demais. Que já não aguentava e que contigo, de mãos entrelaçadas, poderíamos ser um nós para sempre.
Mas depois neguei-o.
E tu aceitas-me as mentiras, engoliste-as, vomitaste-as, quando necessário.
Falei-te de amor, e os teus olhos brilharam. Em seguida desconversei e fingiste não conhecer o tema.
E nessa altura reclamei. Que não te armasses em homem perfeito que eu não engoliria essa história.
Desarmaste-te.
Seguiste na tua, a meu lado.
E eu na minha, procurando um lado para estar.
Logo encontrei um lado. Era o esquerdo.
Mas nessa altura já estavas tu muito longe.
E foi então que me chamei de pedinchona.
Tu riste-te.
Mas tinha de pedir, só uma última coisa.
Fica, disse.
E tu ficaste.
Agora acho que já te pedi demais. Que te dei de menos.
E peço-te, apesar de não ter mais crédito, que, de uma vez por todas,
Sejas tu agora a pedir.
10 octubre 2008
Aprendiz
Sou aprendiz de tudo e mestre de nada. E ando pela vida procurando.
Vou e venho neste movimento de forças que me faz sempre ir um passo à frente. Queria compreender esta energia que nos faz procurar sempre algo maior, uma meta mais arriscada, um desafio mais melindroso.
E no final, sinto-me uma eterna buscadora e falhadamente encontrada.
Pergunto-me se chegará o momento em que os pés se colarão a uma terra, em que os olhos chorarão de alegria pela mesma paisagem revisitada. Ou talvez esse dia nunca chegue. Talvez eu seja mesmo uma eterna aprendiz em busca de um complemento. E a minha plenitude varie de ofício em ofício. Ou, quem sabe, tudo isto seja apenas uma desculpa poética de alguém que nunca se sentirá suficientemente boa, capaz, apropriada. De alguém que nunca se deixou viver de verdade. Viver o suficiente.
Enquanto as respostas não chegam – será que um dia chegarão? – sigo dedicando-me à minha mestria: ser aprendiz.
Vou e venho neste movimento de forças que me faz sempre ir um passo à frente. Queria compreender esta energia que nos faz procurar sempre algo maior, uma meta mais arriscada, um desafio mais melindroso.
E no final, sinto-me uma eterna buscadora e falhadamente encontrada.
Pergunto-me se chegará o momento em que os pés se colarão a uma terra, em que os olhos chorarão de alegria pela mesma paisagem revisitada. Ou talvez esse dia nunca chegue. Talvez eu seja mesmo uma eterna aprendiz em busca de um complemento. E a minha plenitude varie de ofício em ofício. Ou, quem sabe, tudo isto seja apenas uma desculpa poética de alguém que nunca se sentirá suficientemente boa, capaz, apropriada. De alguém que nunca se deixou viver de verdade. Viver o suficiente.
Enquanto as respostas não chegam – será que um dia chegarão? – sigo dedicando-me à minha mestria: ser aprendiz.
07 octubre 2008
A cor do verniz
Estávamos em momentos de revelações sentados no chão do reggae dos populares. Uma palavra ao ouvido e um toque que faz o mundo dar cambalhotas.
E, de repente, sem aviso prévio ou olhar denunciador, comenta:
- Usas verniz vermelho – ou será que ele disse encarnado?
Na verdade, estava preparada para qualquer comentário, tinha ensaiado, qual exame oral, todas as respostas possíveis. E tinha também pintado as unhas horas antes da festa, claro. Um vermelho sedutor. Nestas alturas há que tentar tudo.
Respondi-lhe um “sim” cor de verniz, e fiz um gesto de pouca importância, sem querer delatar qualquer prévia preocupação sobre o assunto.
Ele não tinha gostado da escolha, conclui.
- Não, não é isso, claro que gosto.
Apesar de tudo, no próximo encontro passei-lhe acetona.
Com o passar do tempo, esses detalhes deixaram de importar. Esquecia-me dos brincos da cabeceira e dizia-lhe que o verniz lascado era para me dar um ar “mais original e desportivo”.
Mas hoje, quando acordei, pensei: vou pinta-las de vermelho.
Como naquele dia.
E, de repente, sem aviso prévio ou olhar denunciador, comenta:
- Usas verniz vermelho – ou será que ele disse encarnado?
Na verdade, estava preparada para qualquer comentário, tinha ensaiado, qual exame oral, todas as respostas possíveis. E tinha também pintado as unhas horas antes da festa, claro. Um vermelho sedutor. Nestas alturas há que tentar tudo.
Respondi-lhe um “sim” cor de verniz, e fiz um gesto de pouca importância, sem querer delatar qualquer prévia preocupação sobre o assunto.
Ele não tinha gostado da escolha, conclui.
- Não, não é isso, claro que gosto.
Apesar de tudo, no próximo encontro passei-lhe acetona.
Com o passar do tempo, esses detalhes deixaram de importar. Esquecia-me dos brincos da cabeceira e dizia-lhe que o verniz lascado era para me dar um ar “mais original e desportivo”.
Mas hoje, quando acordei, pensei: vou pinta-las de vermelho.
Como naquele dia.
05 octubre 2008
! Nos mola mogollón !
Nas ondas borbulhantes os pensamentos voam e vêm ao sabor de assobios salgados. Os cabelos enchem-se de nós em passeios de bicicleta de assento duro.
E foi numa viagem solarenga à beira mar que tomamos esta decisão.
Foi uma conversa que durou horas, quem sabe dias. Discutíamos os pesos da balança, fazíamos listas imaginárias de prós e contras.
Estávamos na cidade de cristal. Não, risca, não lhe atribuamos fragilidades. Sentíamo-nos vidro robusto e reluzente. Encontrávamo-nos longe de casa e, estranhamente, o sol continuava a reflectir as mesmas ondas.
No fundo é tudo uma questão estética. O amarelo é o novo azul, diz-me. É preciso que te modernizes. Explico-lhe que os sentimentos são coisas do passado.
Convence-me. O mundo agora é amarelo, porque desapareceu de mim a sombra cinzenta que me perseguia. Cortemos-lhe o cabelo, demos-lhe um look actual. Quero dizer, um “mood” actual, se é que me entendem.
Isto para concluir que, como está à vista de todos, mudámos de visual. E quando digo nós digo eu e ele. Rendemo-nos ao amarelo.
Para quem está confuso, porque isto do mundo das metáforas é complexo demais, resumo tudo em uma frase:
! Coruña nos mola mogollón ! e agora temos a cara disso. Que não nos olhem mais com cara de reticências.
E foi numa viagem solarenga à beira mar que tomamos esta decisão.
Foi uma conversa que durou horas, quem sabe dias. Discutíamos os pesos da balança, fazíamos listas imaginárias de prós e contras.
Estávamos na cidade de cristal. Não, risca, não lhe atribuamos fragilidades. Sentíamo-nos vidro robusto e reluzente. Encontrávamo-nos longe de casa e, estranhamente, o sol continuava a reflectir as mesmas ondas.
No fundo é tudo uma questão estética. O amarelo é o novo azul, diz-me. É preciso que te modernizes. Explico-lhe que os sentimentos são coisas do passado.
Convence-me. O mundo agora é amarelo, porque desapareceu de mim a sombra cinzenta que me perseguia. Cortemos-lhe o cabelo, demos-lhe um look actual. Quero dizer, um “mood” actual, se é que me entendem.
Isto para concluir que, como está à vista de todos, mudámos de visual. E quando digo nós digo eu e ele. Rendemo-nos ao amarelo.
Para quem está confuso, porque isto do mundo das metáforas é complexo demais, resumo tudo em uma frase:
! Coruña nos mola mogollón ! e agora temos a cara disso. Que não nos olhem mais com cara de reticências.
03 octubre 2008
A expressão maldita dos amantes
O tempo veio e transformou o amanhã num ontem muito distante. Partiu ao meio as fantasias sonhadas com os cabelos salgados. Mas há sempre um momento, aquele momento, que nem o andar do relógio nos faz esquecer.
Ensinámos os lábios, censurámo-lo, explicámos-lhe que não queríamos voltar a errar. Mas o pensamento é um aluno ranhoso, daqueles traquinas de óculos com fita-cola. Lá está ele, na fila da frente, numa insistência torturante:
- Diz, sente, faz, não omitas, diz, explode, corre, berra.
Para sempre é a expressão maldita dos amantes. Foi carimbada de vermelho há muito tempo atrás.
Mas há aquele momento, aquele um momento, em que o menino birrento vence a nossa autoridade rígida.
Aquele momento em que fechamos o cadeado, em que o pensamento pressiona, insiste, implora.
- Para sempre.
O menino limpa o ranho, ajeita os olhos e pergunta:
- Doeu?
Mas desta vez queremos mesmo que seja verdadeiro. Que não voltemos atrás, que não nos cresçam os calos. Fechamos os cadeados na expectativa de que o futuro seja um jardim de flores perfumadas, ou, quem sabe, uma longa conversa sobre o debate presidencial dos Estados Unidos. Está fechado. E engolimos a chave.
Ensinámos os lábios, censurámo-lo, explicámos-lhe que não queríamos voltar a errar. Mas o pensamento é um aluno ranhoso, daqueles traquinas de óculos com fita-cola. Lá está ele, na fila da frente, numa insistência torturante:
- Diz, sente, faz, não omitas, diz, explode, corre, berra.
Para sempre é a expressão maldita dos amantes. Foi carimbada de vermelho há muito tempo atrás.
Mas há aquele momento, aquele um momento, em que o menino birrento vence a nossa autoridade rígida.
Aquele momento em que fechamos o cadeado, em que o pensamento pressiona, insiste, implora.
- Para sempre.
O menino limpa o ranho, ajeita os olhos e pergunta:
- Doeu?
Mas desta vez queremos mesmo que seja verdadeiro. Que não voltemos atrás, que não nos cresçam os calos. Fechamos os cadeados na expectativa de que o futuro seja um jardim de flores perfumadas, ou, quem sabe, uma longa conversa sobre o debate presidencial dos Estados Unidos. Está fechado. E engolimos a chave.
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