23 mayo 2009

eumaistu

Nós somos aquilo que fomos enquanto soubemos ser. E agora não somos, porque já não somamos nos números da calculadora.
Lembro-me de quando éramos. eumaistu. Agora transformámo-nos em eu e tu, o que quer dizer, em resumo, que já não formamos palavra.
Não existimos nesta Associacição de Seres Plurais que parece dominar o mundo. Nem eu, nem tu. Porque ali só entram nós.
E cada vez que nos vejo, eu e tu, em escritas separadas e conceitos distantes, surpreendo-me.
Porque a minha cabeça ainda não aprendeu a deixar de pensar no plural.

20 mayo 2009

Os astros e o caminho

Quero tecer palavras de algodão que te aconcheguem àquelas horas estranhas em que decides descansar.
Quero embrulhar-te num pacote cheio de fita-cola para que não te rasgues e depois envolver-te num impermeável, com um pouco de laca por cima. Melhor não arriscar.
Vou aparecer ai, de pontinhas dos pés, e ajeitar o teu cabelo de cogumelo e endireitar aquele caracol rebelde que insiste em desalinhar-se e esticar-te o lençol e dar-te todas as respostas àquelas perguntas que nunca tiveste coragem de fazer.
E, nessa noite, vou contar-te o que comi ao almoço, o que o professor respondeu à pergunta e falar-te da manchete de um jornal local. Vou rir-me da tua cara amassada e zangar-me porque estás sempre a ver filmes e nunca a filmar. Vou mostrar-te a verruga nova que me apareceu e queixar-me das enxaquecas.
E depois de tudo isso, já que estou ai, aproveito para me deitar um pouco e deixar-me embalar pela serena harmonia de outrora. Aquele tempo em que os astros se alinharam para mostrar-nos o caminho.
Prometo não acordar-te, nem queixar-me da tua apneia. Prometo usar sapatos de lã e banhar-me com as minhas próprias lágrimas. Prometo ficar ali até ao dia em que, finalmente, voltes a acordar a sorrir. Como naqueles dias. Os dias em que os astros…

14 mayo 2009

Soldado

Sou como aquele soldado húngaro que se gabava dos seus uniformes e dos hinos harmoniosos, dos sapatos engraxados, do batalhão organizado e das armas detalhadamente polidas. Até ao dia em que chegou a guerra e ele descobriu que nunca tinha aprendido a lutar.

07 mayo 2009

A otra cosa mariposa

Sai vício, sai.
Já te pedi de todas as maneiras que sabia, já chorei lágrimas de mendigagem, já implorei, já cedi e já te desprezei.
Por que é que então não abandonas, de uma vez, este corpo de que te fizeste escravo? Porque não migras para um novo paradeiro e conquistas outro coração vulnerável.
Preciso fechar-me numa casa, acorrentar-me à minha cama e sofrer, dor a dor, todas as torturas desta desintoxicação.
Sai vício, sai.
Leva contigo a tua voz aconchegante, as horas de conversas-gargalhadas tidas em sussurro num ouvido qualquer. Vai-te embora e arrasta os flashs de memória, o sorriso de cada pensamento teu, a perfeição daquele dia passado, preguiçosamente, à beira-mar.
Sai, imploro-te, sai.
Inscreve-te numa maratona e foge.
Mas mais rápido. Por favor.

06 mayo 2009

O eterno escavar

De repente toda a sua vida transformou-se num eterno escavar na areia. Um buraco mais e mais profundo que o asfixiava gradualmente. Uma cova sem fim, que a cada movimento o soterrava um grão mais e o aproximava da fatalidade que vinha omitindo há tanto tempo. Ao dar-se conta, as palavras morderam-lhe os lábios, as lágrimas e os soluços escaparam dissonantes em resposta. Saiu como um louco daquele buraco e instalou-se num cubículo qualquer.
Ali a vida era mais segura. Ali, podia menosprezar os penosos degraus da escadaria da aprendizagem e as regras mais elementares de uma grandiosidade futura. Ali podia passar os dias entre lágrimas e pensamentos. E se falhasse, não teria grande relevância porque, pelo menos, não tinha sequer tentado.

05 mayo 2009

A viagem.

Enquanto a vida passa à velocidade de um cronómetro de segundos apressados, eu vou fazendo notas mentais para não me esquecer daquele olhar, do comentário mal conseguido, da história da amiga do vizinho que tem um gato novo. Os meus apontamentos vão acumulando-se em resmas de folhas coloridas que me pesam na cabeça. Mas não importa, há que anotar tudo para não esquecer nada. Anotar tudo, para poder contar depois.
Depois como daquelas vezes em que ias de viagem ou passavas a noite em casa de um amigo. Depois como um “já te ligo daqui a bocado”.
Depois como se houvesse realmente um depois.
Mas parece que depois do depois não há nada.
É um silêncio total, cuja banda sonora são os clicks desesperados nos ícones sociais que outrora me conectaram a ti. Um pequeno suspiro à espera do dia em que me deixem, finalmente, dizer: “Que tal essa viagem? Conta-me tudo.”