30 abril 2009

Caroços de tangerina

Acreditava que seria uma espiral perfeita, eterna, colorida e brilhante, como as tardes de domingo a jogar Sonic na Sega Saturn. Que aquele cheirinho cítrico de fruta descascada iria continuar impregnado na nossa pele, recém queimada de sol. Via-nos numa fotografia congelada de sorrisos extravagantes, num passado que nunca chegaria ao futuro banal de passividade amorfa.
Mas foram comendo as nossas costuras e, aos poucos, deixámos de ser capazes de remendar-nos. Andávamos rotos pelas ruas sinuosas de um país estrangeiro, em que naquela imagem, reflectida nos vidros das lojas de marca, não éramos nós que aparecíamos. O meu nariz já não cheirava os caroços de tangerina engolidos ao acaso, nem aquele perfume que um dia deixaste no lençol.
Nós éramos eu e tu. E isso já não me servia.
Neguei 29 vezes e à trigésima disse: chega.
Agora chegou e chegámos nós aqui. Sem saber muito bem se preferimos o 29 ou o 31.

23 abril 2009

All-star

Não quis olhar. Congelei-te numa imagem e fechei os olhos. A luz doía muito e mostrava um filme serie B que falava de um homem que se queria compor, que lutava por encontrar o tom certo, a nota perfeita, afinada, ritmada a uma melodia pré estabelecida. Guião medíocre. Apertei mais os olhos e respirei.
Aqueles não éramos nós. E os nossos ouvidos sangravam de ferida aberta com remédio errado. A voz tremia a cada piada mal conseguida, a cada palavra engolida com miolo de pão.
Tu és aquele all-star roto com o dedo de fora. És o sapato que se sabe lixo e mesmo assim, heróico, resiste até ao fim da viagem. Sem descompor-se, sem nunca desmaterializar.
E eu sou só um acompanhante desse all-star de caveira desbotada. Sigo, cega, os seus passos. Porque há que protege-lo. Custe o que custar.

a coleira

Penso naqueles dias em que a vida era um constante count-down de sacos de goma e museus de ciência. Olho à minha volta e estremeço com os sorrisos derretidos de felicidade, com os lugares comuns de satisfação, com os meus pés, sozinhos, metidos debaixo da areia.
Agora tudo o que eu queria era sair, libertar-me destas amarras de material indestrutível. Construir um novo eu, um que soubesse voar longe e regressar com as suas conquistas. Quero ser pássaro predador, mas há algo que me prende à terra, uma coleira incómoda que amarra as minhas asas e diz-me baixinho que a liberdade é sofrimento.

20 abril 2009

Liliputiense

Sou uma formiga na fila para conseguir um grão de açúcar. Um pontinho negro em busca de uma cor complementar.
Sou formiga preta e medrosa, sempre expectante de quando chegará a dita pisadela. Quando esmagar-me-ão com uma sola de sapato lamacenta ou um salto agulha de uma tia afectada qualquer?
E do pisão ao espatifamento total, um segundo. Assim, puff.
Tudo porque hoje apresentei-me à minha essência numa entrada de dicionário. Respirei fundo e pensei: “Até é uma palavra engraçada. Parece-se com uma formiga”

18 abril 2009

Estás sozinha. Mergulhada em ti mesma num mundo egoísta no qual nunca aprendeste a viver. O teu umbigo cresceu, a tua cara mudou e a tua roupa ganhou todo um novo significado. És tu jogada aos leões. Tu sem carro de apoio, lançada a um cenário agreste que faz bolhas nos pés e lesões no joelho.
Meio a coxear, apercebeste-te da dimensão da tua nova existência. Cambaleias, duvidas, dás um passo de segurança para trás. Porque te crês sempre tão corajosa?

16 abril 2009

O tombo

Ela caiu e enquanto tombava via a sua queda em câmara lenta. Tropeçando, pouco a pouco, nas pedras do caminho, ferindo os pés e inclinando-se para a frente, para trás. Resistindo. Mas era inevitável. As forças da gravidade sempre venciam.
Primeiro um pé, depois o outro, uma aterrizagem brilhante, daquelas que fazem pouco barulho e quase não levantam poeira.
De repente, tudo mudou.
Depois de meses a ensaiar aquela queda, apercebeu-se que a genialidade da técnica de pouco lhe valia, pois estava ali, no chão, caída.
Ao nível da baba do cão, da formiga venenosa e da lesta gorda.
O mundo parecia tão grande visto desde baixo.
Grande e assustador.
Foi nesse momento que arriscou e pediu: “Gravidade, dás-me mais uma chance?”