29 noviembre 2007

O futuro presente de um passado longínquo

Nunca fui boa com passados. Persiste em mim certa dificuldade de entender o que já foi e o que ainda é. O presente arrasta-se numa lentidão de sinais proibidos, de linhas brancas riscadas no chão, de compassos de espera em músicas electronicas.
E a cada recomeço é impossível apagar o que fica para trás.
Ele surge e volta e escapa-se do armário onde o tranquei. O bichinho rói a madeira e esquiva-se das ratoeiras. Esconde-se em caras conhecidas e sentimentos familiares.
O ano está a chegar ao fim.
Com ele as listas e as cores simbólicas, as prioridades e os objectivos.
E o que é futuro e o que é presente? O que é futuro passado no presente anterior? As ilusões e os sonhos rodopiam a cabeça. A lama do chão desliza e faz cair.
Papel e caneta. Teclado e tela branca. Vamos lá.

25 noviembre 2007

direitos de autor

Planos equívocos em calendário incertos, dúvidas e ilusões que atormentam o pensamento. Os dias riscam-se e o relógio alerta: o futuro é um monstro sem face e violento.
Os meses rastejam numa agonia inesperada, remoem os órgãos e embaciam os cabelos. Os olhos, coitados, são os que mais sofrem. Eles e a sua visão futura incompleta.
O pensamento torna-se algo impuro. É difícil contornar suas viagens. A luz falha, seca e faz birra. Resiste. E hoje brilha num tom mais forte.
Todas as caras que vejo são dela. A luz que se esconde atrás das escadas, que grita por socorro com olhos de malária, que teima, teima, teima mas não pára.
Em cada dia e cada noite, o duelo se intensifica, os soldados se agridem e os heróis são condecorados.
Os mortos e os feridos recuperam-se. E as chamas permanecem ainda inabaladas.

24 noviembre 2007

Danguetis

Para ela nuguets é danguetis, self-service é servi-servi e nectarina é naftalina.
Todos já estamos habituados ao seu linguarejar atrapalhando, tropeçando nas palavras sem nunca cair. E quando, timidamente, a corrigimos, ela ri uma gargalhada profunda e balbucia em ritmo de tarantela. “É isso mesmo. É que eu não sei dizer direito”.
Ninguém resiste àquele rosto de menina que ainda está a aprender a viver, às birras de criança saída do berço, às manias aprendidas na televisão.
- Tchau. Estou indo.
E lá vem ela atrás de mim, num passo de pinguim apressado que reclama do calor e do frio.
- Pegou um casaco? E a maçã?
Foi assim que ela aprendeu a adaptar-se ao mundo. Fazendo da correria uma gigantesca rotina de obrigações e prazeres que desfilam diante de si.
- Já chegou? Ah é, você chega mais cedo na quinta-feira, né?
Não. Mas de que adianta contar-lhe que hoje o professor faltou, que o trabalho apertou ou que o cansaço bateu?
- Hoje é quinta, tem macarrão. Tá no forno é só aquecer.
Fala com os “pés para o alto” na sua posição de novela mexicana. Diz, despreocupadamente, como se acreditasse mesmo que eu seria capaz de aquecer sozinha o jantar. “Ah, deixa que eu aqueço, vai” acrescenta numa espontaneidade teatral em tom de mãe benevolente. E eu deixo sempre.
É então que me conta do calor e do frio. E do tio que se magoou e da tia que está velha. Detesta velhos. Logo ela que nunca se senta para comer “porque comer sentado engorda”.
- Já são dais, vou dormir.
- Dez, nonna.
E lá vem a gargalhada de novo. Com as bochechas rosadas e um abanar dos cabelos encaracolados.
-Amanhã é sexta. É o dia que você acorda cedo, né?

Buona notte. Sogni d'oro.

19 noviembre 2007

Bílis de lesma derretida

A incerteza come-me as costuras. Bichinho vagaroso, lesma indolente, apática, preguiçosa. Não se limita a roer o fio e a desfazer o nó. Claro que não. Lesma pateta, imbecil. Ela vai ao casulo e saboreia-o com água a escorrer-lhe pelos beiços.
A minha barriga ronca um enjoo intragável e o corpo verga-se numa angústia sonora de choro seco e dor pontiaguda.
Em rodopio a cabeça segue o exemplo e viaja em ruas esburacadas e em rios de asfalto com esgoto entupido. A culpa é do prefeito. Mais uma vez.
O pecado nunca é nosso. É da mão invisível que não nos tocou, é da oportunidade falha, da roupa mal escolhida, daquela piadinha que não pegou.
Sou pura bílis e lesma desfeita. Sinto-a a romper-me os tecidos, a fazer de mim sanfona popular.
Não caibo no armário porque está grande e está pequeno. Não consigo decidir com gordura efervescente a borbulhar-me a cabeça.
Acho que estou a entrar em erupção.
Perigo.
Saiam das vossas casas. A lava costuma desfazer lares, destruir cidades, corroer corpos humanos, um a um com um sorriso diabólico de satisfação.
Este é o último aviso.

17 noviembre 2007

O Colchão.

Ele chegou. Entrou pela porta, meio de lado, meio escondido naquela roupa nova que mais parecia um saco plástico.
Displicente, diriam por cá.
Até gostei do seu jeito meio durão de andar, do seu ar pesado e maduro.
Foi entrando e nem perguntou.
Agora está no seu altar de destaque, no pódio atractivo de olhares.
Tantas esperanças e expectativas. Imagino-me imersa numa banheira de perfume familiar, colorida no abraço macio daquele momento. A voar pelos pessegueiros, com areia a fazer cócegas nos pés. Quero-me num mundo de balas de goma e dores de barriga com lábios rasgados. Os pontos de exclaçao substituem os finais. E as interrogativas? Essas são festas no salão de jantar do Titanic.
Traz-me de volta os sonhos.
Por favor.

15 noviembre 2007

Grândola

Estamos em guerra. Mais uma vez.
Escondam-se em vossas casas, activem os alarmes, tirem do baú aquele colete antigo à prova de balas.
Tiros e turbilhões de mensagens subliminares, vendavais de homens estendidos no chão e rios de sangue diante dos nossos pés. Não aquele sangue vermelho e brilhante, um sangue escuro, quase preto, quase de luto pela morte dos seus soldados.
A cera não é suficiente para proteger os tímpanos daqueles zumbidos ensurdecedores de tentação e luxúria. Quero falar e a voz não sai, o código morse parece-me tão pouco poético. Incerto e dúbio como linguagem construída para confundir os inimigos.
Em guerra é assim. O vencedor é quem resistir mais, quem matar com mais força e convicção os obstáculos que surgirem. E, às vezes, estamos tão próximos de morrer. O inimigo aparece, com falinhas mansas, e quase nos convence a darmos um tiro no próprio pé. Quase nos faz passar para o outro lado, desistir daquilo em que acreditamos.
E ultrapassada mais uma etapa, vem outra bomba, e outro um amigo morto em combate. Vem a falta de comida, a exaustão física. O caminho mais fácil está ali, nos outodoors de propaganda política, no sorriso dos casais recém formados.
Já não tenho família e escrevo todos os dias os meus princípios numa folha de papel para não me esquecer do que me trouxe até aqui.
Estou a chegar ao limite.
Quem sabe esteja na hora de desistir, ou talvez de invadir as rádios e pôr a tocar o “Grândola vila morena”.

“Eles também não tinham coragem.
Mas raptaram muitos entes queridos
E às tantas... já não dava”

13 noviembre 2007

aquele vestido branco

É como aquele vestido branco no fundo do armário. Ele fica-me bem, a sério que fica. Até o meu pai gosta! Mas eu nunca o usei.
Não é que nunca o tenha usado mesmo. Usar do verbo usar. É que nunca lhe dei uso.
Ele tem um problema. (Já disse que me ficava bem?) É que não é lá muito oficial.
É comprido mas não o suficiente. Tem brilho, mas às vezes brilha demais. Ocasionalmente, aquelas costas abertas parecem-me um pouco desnecessárias.
E depois há o problema dos sapatos. Eu até poderia usar com aqueles meus sapatos brancos novos, mas nunca me apetece. Tenho vontade de comprar uns sapatos vermelhos e pôr um batom. Mas depois acho que não cai lá muito bem. Opto pelas sabrinas pretas e malinha a condizer a tira colo. Mas acabo sempre com a ideia de que é meio sem sal.
De facto, é apenas uma questão burocrática.
Mas na prática é tão mais complicado do que isso.
Passo noites a pensar naquele vestido branco. Em como desde o dia em que o experimentei na loja, tive a certeza de que seria meu. Eu sou bastante possessiva quando se trata de vestidos. Obriguei a senhora a prometer-me que não encomendaria mais nenhum vestido, porque queria que o meu fosse exclusivo. Cheguei até a voltar lá umas tantas vezes para me certificar que não havia vestidos brancos à venda. E nada. Senhora honesta, como já não se vê por ai.
Lembro-me também das vezes que o usei. Parecia perfeito. Todos elogiavam o meu vestido e a minha escolha. E eu sentia-me realizada. Queria pô-lo todos os dias e dizer ao mundo que era meu e só meu. Fazer ciúmes e snobar os outros.
Mas houve um dia em que a moda ditou: vestidos brancos? Totalmente fora.
E o vestido ficou ali, no fundo do armário à espera que um dia, quem sabe, possa torná-lo oficial novamente.
E, enquanto isso, torturo-me devagarinho cada vez que dou por mim a olhar para outros vestidos nas lojas de marca.

11 noviembre 2007

A caixa

Lembro-me de quando brincava às escondidas e o meu adversário entrava no quarto. Eu fechava os olhos, como se isso me tornasse invisível, e parava de respirar.
Ficava ali, de testa franzida e músculos paralisados, rezando para ser camaleão.

Quando vi aquela caixa, espremi os olhos, bem juntinhos, apertados e enrugados. E tenho a certeza que desapareci naquele momento.
Foi como se uma nuvem de ontem se misturasse dentro de hoje.
E o resultado era uma plenitude histérica.
O sorriso tinha barulho de borboletas e a barriga tremia junto com as pernas de dentes a brilhar. Não sei bem. Tinha todos os sentidos desorientados numa agonia de convulsões e espasmos escapatórios.
Era como se ali, dentro daquela caixa rasgada, pudesse encontrar a resposta.
Não podia mais esperar, era só dar um passo.
Mas tudo parecia tão surreal, como se uma corrente invisível me prendesse ao chão. Isto não me podia estar a acontecer. Eu nunca tive sorte nestas coisas. Belisquei-me.

O meu adversário saia do quarto. E eu sentia um calafrio de vitória a percorrer-me o corpo. Nunca fui boa a jogos. Não estava habituada a vencer.
Agora só faltava correr e gritar as palavras mágicas da felicidade infantil. Já tinha passado mentalmente o plano esquemático na minha cabeça. Estava decorado ao pormenor.
O primeiro passo era abrir os olhos.
Sai camaleão, mostra-te, faz-te forte, enfrenta o mundo.

Lusa

Eram sentimentos desnorteados, que caminhavam sem rumo pela cabeça latejante.
Uma vontade de fugir.
Chega ao quarto, pega na tua mala, enfia uma roupa qualquer (porque naquele mundo não é preciso secador nem duas calças de ganga) e não te esqueças do chapéu. Puxa as rodas e não ligues ao trolitar que fazem no passeio rasgado. Já estão habituados.
Não precisas disto, nem do sorriso forçado. Não precisas sentar e observar que não é ali o teu mundo. Basta correres até o ar ofegante te faltar. O movimento é simples. E se vires o mar, nada. Para que serviram 15 anos de aulas de natação?
Mas ali havia surpresas de passeios matinais, músicas novas decoradas ao descaso, bolo e balões que surgiam com bebidas flamejantes.
Havia o dormir despreocupado, as greves da faculdade, o intercâmbio aos doze anos, o movimento sem terra. O sol que batia devagarinho na pele branca e contava aventuras de adolescentes inconsequentes, confissões de estudantes excluídos.
Havia as mentiras e as discórdias, os dramas e o deixa andar.
E enquanto a certeza continuar a escapar-me pelos dedos, vou saltar em concertos electrónicos, comer quitutes australianos e conhecer a lojinha do senhor Fernandes.
- E ai Lusa? Não vai comprar nada?