Ele tem aquele jeito esquisito de acordar. Meio despenteado, meio de mau humor matinal. Olha-me com aquela cara de vincos de quem quer ficar o dia todo a preguiçar. Confortável.
Ele tem a habilidade de não fazer nada o dia todo e mesmo assim manter-se ocupado. Ele é tão desarrumado e arruma tão bem. Um paradoxo, diria.
Falta-lhe sempre uma peça de roupa no armário, um instrumento musical e dinheiro na conta bancária. Eu faço-lhe listas para ajuda-lo a gerir-se melhor. Mas ele nunca as cumpre.
Para ele as coisas são para sempre. É um eterno romântico, mas nunca o admitirá.
É aventureiro e medroso. Proactivo e propassivo. Estou sempre a dizer-lhe para canalizar melhor as suas qualidades. Ele não me faz caso. Faz parte da sua complexidade, gosto de pensar. Um caos orquestrado, corrigiria ele.
Tem problemas e nunca soluções. Tem ideias e nunca projectos, inícios e nunca finais.
É daquelas pessoas que aparece um dia à porta de tua casa e diz: faz as malas, vamos viajar. Eu fico nervosa, pego num mapa, anoto o caminho, faço três ou quatro telefonemas importantes. Ele pega em tudo e manda pela janela.
Agora estamos separados. E isso custa.
Mas o maldito tem uma impressionante capacidade de, apesar da distância, conseguir manter a minha vida um pouco mais desorganizada. E eu? Tento ordenar-lhe os dias telefonicamente. Nunca com muito sucesso, admito.
25 enero 2009
22 enero 2009
E depois lembro-me daquele dia em que fomos saltimbancos ciganos. Da areia da praia que se metia entre os dedos dos pés. Do acordar cedo e ficar a preguiçar. Juntos.
Lembro-me dos programas de domingo que nunca se repetiam, do pequeno-almoço das sete da manhã. Da palavra não dita numa noite de presentes.
Houve os jantares de cartão de crédito e aqueles que nunca chegámos a jantar. Os de comida descongelada e pão do supermercado.
Aquela gargalhada que te fez orgulhoso e o primeiro dia em que ajeitaste o meu cabelo. De quando saímos e não lembramos de ter voltado. Das vezes em que achámos melhor não sair.
E é então que me lembro de ontem. O dia em que deste tanto e eu tão pouco. Em que olhaste-me e eu fiz questão de desviar-te.
O dia em que me percebeste. E não deixaste de sorrir.
Apesar de tudo.
Lembro-me dos programas de domingo que nunca se repetiam, do pequeno-almoço das sete da manhã. Da palavra não dita numa noite de presentes.
Houve os jantares de cartão de crédito e aqueles que nunca chegámos a jantar. Os de comida descongelada e pão do supermercado.
Aquela gargalhada que te fez orgulhoso e o primeiro dia em que ajeitaste o meu cabelo. De quando saímos e não lembramos de ter voltado. Das vezes em que achámos melhor não sair.
E é então que me lembro de ontem. O dia em que deste tanto e eu tão pouco. Em que olhaste-me e eu fiz questão de desviar-te.
O dia em que me percebeste. E não deixaste de sorrir.
Apesar de tudo.
21 enero 2009
A primeira página
Tocaram o sino como na época da escola. Como aquela octogenária doente no terceiro andar da sua mansão. Acudia-lhe uma empregada fardada, de sapatilhas antiderrapantes e uma bandeja de prata.
Mas este sino era diferente. Dele não vinham alunos suados, nem amas do lar alinhadas ou sequer um padre para começar a missa. Vinham pessoas normais, daqueles ídolos estranhos que fomos aprendendo a criar. Iam enchendo e esvaziando aquela sala de veludo verde. Do seu discurso, só um comentário: compro.
E assim se negociavam palavras, linhas e até vírgulas.
Compro.
E daquelas compras saíam vendedores satisfeitos, compradores que se sentiam burlados. Saíam homens a correr, outros em passo lento, indiferente. No ar pairava uma angústia corriqueira, daquela que dorme por baixo da almofada. Os minutos corriam em contra-relógio e quando contavam os 54, fim.
Desta vez sem sinos, nem despedidas. A sala esvaziou. Ficou apenas o silêncio e o veludo verde que adornava aquela primeira página.
A que um dia fará história.
Mas este sino era diferente. Dele não vinham alunos suados, nem amas do lar alinhadas ou sequer um padre para começar a missa. Vinham pessoas normais, daqueles ídolos estranhos que fomos aprendendo a criar. Iam enchendo e esvaziando aquela sala de veludo verde. Do seu discurso, só um comentário: compro.
E assim se negociavam palavras, linhas e até vírgulas.
Compro.
E daquelas compras saíam vendedores satisfeitos, compradores que se sentiam burlados. Saíam homens a correr, outros em passo lento, indiferente. No ar pairava uma angústia corriqueira, daquela que dorme por baixo da almofada. Os minutos corriam em contra-relógio e quando contavam os 54, fim.
Desta vez sem sinos, nem despedidas. A sala esvaziou. Ficou apenas o silêncio e o veludo verde que adornava aquela primeira página.
A que um dia fará história.
19 enero 2009
Algodão doce embrulhado
Tinha-o imaginado um sem número de vezes na minha cabeça. Era aquele discurso do sempre, da força, do desculpa e do eu também. Vinha embrulhado em papel de presente brilhante. Daqueles vermelhos com bolinhas brancas. Tinha um laço discreto e abria-se com facilidade. Lá de dentro saíam palavras com sabor a algodão doce. Mas não dos cor-de-rosa. Dos azuis, os mais raros. Palavras que se podiam comer ou só ficar ali, a contempla-las, enquanto se enrolavam à volta do palitinho.
E no fim deixavam aquele saber gostoso na boca. O sabor do quero mais, do pagava o que fosse para ter essa maquina em minha casa, do venda-ma por favor, imploro.
E então atende o telefone:
- Olá, desculpa, é que ‘tou ocupado.
- Ah, não faz mal, não era nada de importante, já falamos.
Era só uma história de palavras embrulhadas em papel brilhante. Coisas de crianças que ainda sonham com algodão doce. E ainda por cima dos azuis.
E no fim deixavam aquele saber gostoso na boca. O sabor do quero mais, do pagava o que fosse para ter essa maquina em minha casa, do venda-ma por favor, imploro.
E então atende o telefone:
- Olá, desculpa, é que ‘tou ocupado.
- Ah, não faz mal, não era nada de importante, já falamos.
Era só uma história de palavras embrulhadas em papel brilhante. Coisas de crianças que ainda sonham com algodão doce. E ainda por cima dos azuis.
18 enero 2009
Desconectar
Hoje quero sair, desconectar, deixar para trás esta vida de dependências. Quero correr pelo mundo de mochila às costas, alimentar-me de gomas e batatas fritas. Chega de encenar este filme de bonzinhos e vilões, em que ganham os solidários de sorriso forçado e trabalho árduo.
De repente, toda a existência torna-se um ponto de interrogação contínuo e derrete pelo corpo, alimentando a terra.
Sinto-me tonta, crédula, daquelas espécies que o mundo moderno já anulou. Sinto-me usada, violada, uma rainha nua que durante muito tempo desfilou pela cidade. Até que chegou o dia em que descobriu a sua nudez. Nunca mais pôde sair de casa, nem olhar o seu povo de cabeça erguida. Desconectou.
De repente, toda a existência torna-se um ponto de interrogação contínuo e derrete pelo corpo, alimentando a terra.
Sinto-me tonta, crédula, daquelas espécies que o mundo moderno já anulou. Sinto-me usada, violada, uma rainha nua que durante muito tempo desfilou pela cidade. Até que chegou o dia em que descobriu a sua nudez. Nunca mais pôde sair de casa, nem olhar o seu povo de cabeça erguida. Desconectou.
17 enero 2009
Sem hipoteca
Ele queria matar os andaluzes e atirar os ingleses ao mar. Mas era pacífico, assegurava. Falava-nos com frases erráticas e desinteressadas, daquelas que o professor recomendou nas entrevistas. Pena não terem sentido.
Eu notava como lhe caíam bem as luzes azuis daquele bar de música americana. Ele, na sua solidão, sentado de copo cheio, à espera de uma presa. E nós, sem querer, comemos o isco.
Formou-se artista de trajes estranhos. Palhaço, imaginei. Mas acabou ganhando a vida servindo bebidas num bar. Pelo menos não a perdeu numa hipoteca, comentou. Era calvo, daqueles que mais preferiam ser carecas. Balançava a cabeça, freneticamente, enquanto dissertava sobre os urinóis. E sobre o amor. A noite ia avançando e aquela veia da loucura que tinha saliente na testa aumentava com olhos cada vez mais esbugalhados. Em certas circunstancias, tive medo que explodisse.
E vieram mais frases nunca acabadas, ideias que não era capaz de concluir. Outra vez os urinóis, outra vez a vida de sexo ocasional e sexo indefinido.
Pagou-nos duas cervejas para nos compensar o tempo desperdiçado.
Era mais um filho da cocaína.
Mas este, pelo menos, não tem a casa hipotecada, pensei.
Eu notava como lhe caíam bem as luzes azuis daquele bar de música americana. Ele, na sua solidão, sentado de copo cheio, à espera de uma presa. E nós, sem querer, comemos o isco.
Formou-se artista de trajes estranhos. Palhaço, imaginei. Mas acabou ganhando a vida servindo bebidas num bar. Pelo menos não a perdeu numa hipoteca, comentou. Era calvo, daqueles que mais preferiam ser carecas. Balançava a cabeça, freneticamente, enquanto dissertava sobre os urinóis. E sobre o amor. A noite ia avançando e aquela veia da loucura que tinha saliente na testa aumentava com olhos cada vez mais esbugalhados. Em certas circunstancias, tive medo que explodisse.
E vieram mais frases nunca acabadas, ideias que não era capaz de concluir. Outra vez os urinóis, outra vez a vida de sexo ocasional e sexo indefinido.
Pagou-nos duas cervejas para nos compensar o tempo desperdiçado.
Era mais um filho da cocaína.
Mas este, pelo menos, não tem a casa hipotecada, pensei.
14 enero 2009
Entre o salgado e o inexistente
Um momento congelado. Ele olha-me de olhos inexistentes, daqueles que só ele sabe fazer. Os meus estão salgados, mas isso nem é preciso mencionar.
Eu não queria ter dito aquilo e nem sei porque tudo começou.
Não, isso não é verdade. Eu lembro-me bem do princípio desta história.
Aconteceu no dia em que ele tinha olhos grandes e os meus estavam, surpreendentemente, salgados. Os dele olhavam envergonhados para baixo, e os meus para cima, num piscar superior de quem quer fotografar o momento.
O chão estava frio e a noite cheirava-me a cerveja derramada, camisa azul clara e suor nervoso.
Algo foi dito e, de repente, os seus olhos mudaram. Foi-se-lhe a expressão e aquele brilho lubrificado que nutria os escassos centímetros que lhe separam a as pálpebras dos cílios. Por momentos, juro que nevou. E então os meus olhos, mal-educados, deixaram de saber para onde olhar e escorregaram para baixo.
Foi nesta dança de olhos vagabundos que se fez um olhar. Aquele a que nos fomos habituando a ter.
E agora estamos aqui, entre o salgado e o inexistente, tentando olhar-nos outra vez.
E sei que a culpa toda foi daquele dia.
O dia em que olhar pareceu tão fácil.
Eu não queria ter dito aquilo e nem sei porque tudo começou.
Não, isso não é verdade. Eu lembro-me bem do princípio desta história.
Aconteceu no dia em que ele tinha olhos grandes e os meus estavam, surpreendentemente, salgados. Os dele olhavam envergonhados para baixo, e os meus para cima, num piscar superior de quem quer fotografar o momento.
O chão estava frio e a noite cheirava-me a cerveja derramada, camisa azul clara e suor nervoso.
Algo foi dito e, de repente, os seus olhos mudaram. Foi-se-lhe a expressão e aquele brilho lubrificado que nutria os escassos centímetros que lhe separam a as pálpebras dos cílios. Por momentos, juro que nevou. E então os meus olhos, mal-educados, deixaram de saber para onde olhar e escorregaram para baixo.
Foi nesta dança de olhos vagabundos que se fez um olhar. Aquele a que nos fomos habituando a ter.
E agora estamos aqui, entre o salgado e o inexistente, tentando olhar-nos outra vez.
E sei que a culpa toda foi daquele dia.
O dia em que olhar pareceu tão fácil.
01 enero 2009
Aquele ano
Foi um ano. Um ano em que todas as coisas planeadas antecipadamente saíram à sua própria maneira. Um ano em que de Janeiro a Agosto foi Verão. Um Verão molhado de lágrimas à distancia, de inutilidade perdida, de trabalho não recompensado.
Foi um ano de tristeza atenta e de êxtase europeu. De seleccionar para melhorar. Um ano de escolhas e de metas. Desta vez todas cumpridas.
Foi um ano que começou num sotaque e acabou em língua estrangeira. Em que se seguiu à risca as regras da vida de uma cidadã expatriada que foge em busca de soluções.
Um ano sem raízes, como me ensinaram a ser.
Foi o ano em que fizemos um ano.
Um ano de desgaste e escapadelas. De saídas, jantares e viagens. Foi um ano em que se duvidou mais do que nunca e, nos momentos certos, a certeza chegou.
Foi um ano em que o cinzento e o roxo estiveram na moda. Em que ir ao cinema ficou fora dos limites do orçamento, mas se descobriu a magia dos downloads ilegais.
Foi mais um ano em que durante as doze baladas ardia-me o escaldão, a sandália alta doía-me no pé e o ouvido latejava com as explosões de cor no céu. E na última badalada um grito histérico de felicidade, enquanto uma lágrima caía de um flash back de mais um ano.
“É emoção”. Daquele ano que já passou.
Foi um ano de tristeza atenta e de êxtase europeu. De seleccionar para melhorar. Um ano de escolhas e de metas. Desta vez todas cumpridas.
Foi um ano que começou num sotaque e acabou em língua estrangeira. Em que se seguiu à risca as regras da vida de uma cidadã expatriada que foge em busca de soluções.
Um ano sem raízes, como me ensinaram a ser.
Foi o ano em que fizemos um ano.
Um ano de desgaste e escapadelas. De saídas, jantares e viagens. Foi um ano em que se duvidou mais do que nunca e, nos momentos certos, a certeza chegou.
Foi um ano em que o cinzento e o roxo estiveram na moda. Em que ir ao cinema ficou fora dos limites do orçamento, mas se descobriu a magia dos downloads ilegais.
Foi mais um ano em que durante as doze baladas ardia-me o escaldão, a sandália alta doía-me no pé e o ouvido latejava com as explosões de cor no céu. E na última badalada um grito histérico de felicidade, enquanto uma lágrima caía de um flash back de mais um ano.
“É emoção”. Daquele ano que já passou.
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