25 enero 2009

Caos Orquestrado

Ele tem aquele jeito esquisito de acordar. Meio despenteado, meio de mau humor matinal. Olha-me com aquela cara de vincos de quem quer ficar o dia todo a preguiçar. Confortável.
Ele tem a habilidade de não fazer nada o dia todo e mesmo assim manter-se ocupado. Ele é tão desarrumado e arruma tão bem. Um paradoxo, diria.
Falta-lhe sempre uma peça de roupa no armário, um instrumento musical e dinheiro na conta bancária. Eu faço-lhe listas para ajuda-lo a gerir-se melhor. Mas ele nunca as cumpre.
Para ele as coisas são para sempre. É um eterno romântico, mas nunca o admitirá.
É aventureiro e medroso. Proactivo e propassivo. Estou sempre a dizer-lhe para canalizar melhor as suas qualidades. Ele não me faz caso. Faz parte da sua complexidade, gosto de pensar. Um caos orquestrado, corrigiria ele.
Tem problemas e nunca soluções. Tem ideias e nunca projectos, inícios e nunca finais.
É daquelas pessoas que aparece um dia à porta de tua casa e diz: faz as malas, vamos viajar. Eu fico nervosa, pego num mapa, anoto o caminho, faço três ou quatro telefonemas importantes. Ele pega em tudo e manda pela janela.
Agora estamos separados. E isso custa.
Mas o maldito tem uma impressionante capacidade de, apesar da distância, conseguir manter a minha vida um pouco mais desorganizada. E eu? Tento ordenar-lhe os dias telefonicamente. Nunca com muito sucesso, admito.

22 enero 2009

E depois lembro-me daquele dia em que fomos saltimbancos ciganos. Da areia da praia que se metia entre os dedos dos pés. Do acordar cedo e ficar a preguiçar. Juntos.
Lembro-me dos programas de domingo que nunca se repetiam, do pequeno-almoço das sete da manhã. Da palavra não dita numa noite de presentes.
Houve os jantares de cartão de crédito e aqueles que nunca chegámos a jantar. Os de comida descongelada e pão do supermercado.
Aquela gargalhada que te fez orgulhoso e o primeiro dia em que ajeitaste o meu cabelo. De quando saímos e não lembramos de ter voltado. Das vezes em que achámos melhor não sair.
E é então que me lembro de ontem. O dia em que deste tanto e eu tão pouco. Em que olhaste-me e eu fiz questão de desviar-te.
O dia em que me percebeste. E não deixaste de sorrir.
Apesar de tudo.

21 enero 2009

A primeira página

Tocaram o sino como na época da escola. Como aquela octogenária doente no terceiro andar da sua mansão. Acudia-lhe uma empregada fardada, de sapatilhas antiderrapantes e uma bandeja de prata.
Mas este sino era diferente. Dele não vinham alunos suados, nem amas do lar alinhadas ou sequer um padre para começar a missa. Vinham pessoas normais, daqueles ídolos estranhos que fomos aprendendo a criar. Iam enchendo e esvaziando aquela sala de veludo verde. Do seu discurso, só um comentário: compro.
E assim se negociavam palavras, linhas e até vírgulas.
Compro.
E daquelas compras saíam vendedores satisfeitos, compradores que se sentiam burlados. Saíam homens a correr, outros em passo lento, indiferente. No ar pairava uma angústia corriqueira, daquela que dorme por baixo da almofada. Os minutos corriam em contra-relógio e quando contavam os 54, fim.
Desta vez sem sinos, nem despedidas. A sala esvaziou. Ficou apenas o silêncio e o veludo verde que adornava aquela primeira página.
A que um dia fará história.

19 enero 2009

Algodão doce embrulhado

Tinha-o imaginado um sem número de vezes na minha cabeça. Era aquele discurso do sempre, da força, do desculpa e do eu também. Vinha embrulhado em papel de presente brilhante. Daqueles vermelhos com bolinhas brancas. Tinha um laço discreto e abria-se com facilidade. Lá de dentro saíam palavras com sabor a algodão doce. Mas não dos cor-de-rosa. Dos azuis, os mais raros. Palavras que se podiam comer ou só ficar ali, a contempla-las, enquanto se enrolavam à volta do palitinho.
E no fim deixavam aquele saber gostoso na boca. O sabor do quero mais, do pagava o que fosse para ter essa maquina em minha casa, do venda-ma por favor, imploro.
E então atende o telefone:
- Olá, desculpa, é que ‘tou ocupado.
- Ah, não faz mal, não era nada de importante, já falamos.
Era só uma história de palavras embrulhadas em papel brilhante. Coisas de crianças que ainda sonham com algodão doce. E ainda por cima dos azuis.

18 enero 2009

Desconectar

Hoje quero sair, desconectar, deixar para trás esta vida de dependências. Quero correr pelo mundo de mochila às costas, alimentar-me de gomas e batatas fritas. Chega de encenar este filme de bonzinhos e vilões, em que ganham os solidários de sorriso forçado e trabalho árduo.
De repente, toda a existência torna-se um ponto de interrogação contínuo e derrete pelo corpo, alimentando a terra.
Sinto-me tonta, crédula, daquelas espécies que o mundo moderno já anulou. Sinto-me usada, violada, uma rainha nua que durante muito tempo desfilou pela cidade. Até que chegou o dia em que descobriu a sua nudez. Nunca mais pôde sair de casa, nem olhar o seu povo de cabeça erguida. Desconectou.

17 enero 2009

Sem hipoteca

Ele queria matar os andaluzes e atirar os ingleses ao mar. Mas era pacífico, assegurava. Falava-nos com frases erráticas e desinteressadas, daquelas que o professor recomendou nas entrevistas. Pena não terem sentido.
Eu notava como lhe caíam bem as luzes azuis daquele bar de música americana. Ele, na sua solidão, sentado de copo cheio, à espera de uma presa. E nós, sem querer, comemos o isco.
Formou-se artista de trajes estranhos. Palhaço, imaginei. Mas acabou ganhando a vida servindo bebidas num bar. Pelo menos não a perdeu numa hipoteca, comentou. Era calvo, daqueles que mais preferiam ser carecas. Balançava a cabeça, freneticamente, enquanto dissertava sobre os urinóis. E sobre o amor. A noite ia avançando e aquela veia da loucura que tinha saliente na testa aumentava com olhos cada vez mais esbugalhados. Em certas circunstancias, tive medo que explodisse.
E vieram mais frases nunca acabadas, ideias que não era capaz de concluir. Outra vez os urinóis, outra vez a vida de sexo ocasional e sexo indefinido.
Pagou-nos duas cervejas para nos compensar o tempo desperdiçado.
Era mais um filho da cocaína.
Mas este, pelo menos, não tem a casa hipotecada, pensei.

14 enero 2009

Entre o salgado e o inexistente

Um momento congelado. Ele olha-me de olhos inexistentes, daqueles que só ele sabe fazer. Os meus estão salgados, mas isso nem é preciso mencionar.
Eu não queria ter dito aquilo e nem sei porque tudo começou.
Não, isso não é verdade. Eu lembro-me bem do princípio desta história.
Aconteceu no dia em que ele tinha olhos grandes e os meus estavam, surpreendentemente, salgados. Os dele olhavam envergonhados para baixo, e os meus para cima, num piscar superior de quem quer fotografar o momento.
O chão estava frio e a noite cheirava-me a cerveja derramada, camisa azul clara e suor nervoso.
Algo foi dito e, de repente, os seus olhos mudaram. Foi-se-lhe a expressão e aquele brilho lubrificado que nutria os escassos centímetros que lhe separam a as pálpebras dos cílios. Por momentos, juro que nevou. E então os meus olhos, mal-educados, deixaram de saber para onde olhar e escorregaram para baixo.
Foi nesta dança de olhos vagabundos que se fez um olhar. Aquele a que nos fomos habituando a ter.
E agora estamos aqui, entre o salgado e o inexistente, tentando olhar-nos outra vez.
E sei que a culpa toda foi daquele dia.
O dia em que olhar pareceu tão fácil.

01 enero 2009

Aquele ano

Foi um ano. Um ano em que todas as coisas planeadas antecipadamente saíram à sua própria maneira. Um ano em que de Janeiro a Agosto foi Verão. Um Verão molhado de lágrimas à distancia, de inutilidade perdida, de trabalho não recompensado.
Foi um ano de tristeza atenta e de êxtase europeu. De seleccionar para melhorar. Um ano de escolhas e de metas. Desta vez todas cumpridas.
Foi um ano que começou num sotaque e acabou em língua estrangeira. Em que se seguiu à risca as regras da vida de uma cidadã expatriada que foge em busca de soluções.
Um ano sem raízes, como me ensinaram a ser.
Foi o ano em que fizemos um ano.
Um ano de desgaste e escapadelas. De saídas, jantares e viagens. Foi um ano em que se duvidou mais do que nunca e, nos momentos certos, a certeza chegou.
Foi um ano em que o cinzento e o roxo estiveram na moda. Em que ir ao cinema ficou fora dos limites do orçamento, mas se descobriu a magia dos downloads ilegais.
Foi mais um ano em que durante as doze baladas ardia-me o escaldão, a sandália alta doía-me no pé e o ouvido latejava com as explosões de cor no céu. E na última badalada um grito histérico de felicidade, enquanto uma lágrima caía de um flash back de mais um ano.
“É emoção”. Daquele ano que já passou.