31 enero 2007

rituais

A vida é feita de rituais.
Desligar o despertador e ficar a molengar na cama, acordar com o cabelo em redemoinhos e ir, cheia de remelas, até à sala onde, seguramente, ela estará a beber o seu chá e a ver algum programa popular com o dicionário na mão. Olha-me com uma cara de reprovação. Dormi demais, outra vez.
Sair de casa (e está frio).
Fazer aquele percurso de aprendizagem onde o condutor está constantemente bêbado, e a senhora do casaco de pele tem, decididamente, um problema olfactivo; onde as crianças (estranhamente maquilhadas e apetrechadas) fazem barulho, gritam e vibram por mais um dia polémico de escola.
Chegar à minha cidade dos arcos imponentes e parar: cinco minutos de deslumbre pela magistralidade das construções, pela força da natureza, pelos dias de sol com pintinhas de neve ao fundo.
Em casa, a porta toca (adoro aquele som do amigo a chegar, do desconhecido a pedir ajuda, da surpresa, dos olhos brilhantes de contentamento).
O jantar é em família, resulta de uma solidariedade de ingredientes estranhos numa mesa pequena de copos de plástico (não sei porque… sempre tivemos o problema dos copos!). Já não se põem facas e quem cozinha não lava.
Á noite chegam as pessoas, cada uma com uma garrafinha colorida do supermercado barato. Os jogos sucedem-se; sucedem-se as confissões, as declarações de amor; sucedem-se os laços de amizade que se tornam cada vez mais fortes e cúmplices; sucedem-se as manhãs de dor de cabeça e de molengar na cama.
E, se a vida é feita de rituais, tirem-me tudo menos o ritual de acordar, sorrir, aconchegar-me e pensar, “estou em casa”.

30 enero 2007

o controlador de sonhos

Sai.
Não te quero mais aqui. Pára de falar-me baixinho e correr soluçando para me abraçar. Pára de me pedir desculpas, implorar para que volte. Pára de ser tu mesmo naquela perfeição que só tu sabes ser. Pára.
Sai.
Foge para bem longe e esconde-te dos meus olhares amolecidos. Corre sem destino para uma vida sem sofrimento, busca a felicidade sem sacrifício e encontra o arco-íris que estava ali, sorrindo e contente, apenas à tua espera.
Sai.
Cria um novo mundo. Espera horas na fila e pede uma nova certidão de nascimento (não te esqueças de levar uma fotografia). Faz novos amigos, conhece novos eus. Cria uma nova identidade, mas por favor, não voltes atrás.
Sai.
Faz aquilo que nunca fizemos, aquilo que sempre quisemos fazer. Faz aquilo que não te faça sofrer e, por favor, encontra alguém por quem não precises esperar.
Sai.
Desmarca-te da minha pele, dá-me a chave do cadeado para te soltar. Sai, ninguém te está a prender aqui, a porta esteve sempre aberta. Sai e faz muito barulho, grita e dança pois estás livre. Finalmente, livre. Mas sai de vez e pára de brincar com o subconsciente alheio.

Eu sempre soube que controlavas os sonhos.
Não voltes a aparecer.
Isto é uma intimação.

22 enero 2007

beira-rio

Sempre conheci bem as margens desse rio. Conhecia a sua manha, o seu ciclo vicioso, o seu olhar diabólico. Sabia que se transbordasse seria difícil conte-lo, sabia que se chovesse ele iria transbordar.
Fiei-me na mão quentinha do amigo, no sorriso sincero de cumplicidade, no abraço reconfortantemente perfumado. Estava em casa, e eu sabia-o. Não faltava ninguém. Resolvi, cegamente, confiar.
Se soltas o rio não podes voltar a prende-lo. A água revolta-se mais a cada minuto e o abraço vai ficando mais apertado e malicioso. Já tenho os cabelos molhados (tira-os da cara, olha-me nos olhos) e as pernas não querem caminhar. Era um jogo de dois contra um. O meu corpo pede para nadar e puxa-me mais e mais para dentro da corrente. A água tampa-me os ouvidos daquela imensidão de confissões que acabaram por se afogar naquele misterioso rio e nadar para não voltar.
Sentia um calor que vinha de dentro, um abraço que apertava e esquentava a noite fria de montanha, sentia vontade e sabia que não, sentia medo e estava incomodamente reconfortada.
Não me quero lembrar daquela montanha, daquele lugar, daquela água.
Mas não te preocupes, não há problema. O rio tem essa capacidade maravilhosa de silenciar os sentimentos e afogar as lembranças.
Já dizia o famoso ditado:
O que acontece à beira-rio, por ali fica e dali não sai.

20 enero 2007

Il giorno dopo

Nas ruas de Inverno encontro a solução. Tudo se torna mais claro, acolhedor, difícil de negar. Rendo-me aos encantos daquela cidade nocturna. Perco-me imaginariamente por ruas e avenidas quadradas e entrego-me à imponência dos sentimentos extraídos da pedra restaurada das arcadas iluminadas. È naquele momento que tenho a certeza. È ali que a solidão vai passar.
Deixo-me embriagar por garrafas díspares e coloridas, deixo-me levar por cantigas e amigos sorridentes.
São sentimentos intensos de desespero, êxtase, choro e palhinhas gigantes. São toques que fazem estremecer, intimidades que duram segundos, abraços e declarações. São confissões e são mentiras. São amigos e são lágrimas que não cessam de lubrificar os olhos.
Dói-me a cabeça, preciso beber água.

15 enero 2007

cha com leite e nutella com pimentos

Apareceste com o teu dentinho preto, cabelo vermelho-pintado e unhas de verniz estalado. Fechaste-te no teu quarto e transformaste-o numa caixinha desarrumada de papéis, lixo, cabelos, comida e cheiro intenso de enxofre suado. Dormias sempre mais do que devias e faltavas às aulas por capricho. Cozinhavas sempre pimentos e nunca chegaste a fazer o cartão da cantina.
Vou sentir falta dos programas de adolescentes à hora do almoço, de me irritar contigo por nunca levares o lixo, de comer os teus chocolates e de rir, rir, rir até chorar com jogos de rum-cola e copos de plástico com canudos gigantes.
Nunca mais vou poder culpar-te pela luz acesa nem pela casa desarrumada. Não vou poder reclamar da sujidade e dos teus grunhidos monossilábicos. Não te vou ouvir chegar aos tropeções embriagados nem fazer-te o olhar responsável quando misturas o branco com o preto na máquina de lavar.
Quem te deixou entrar na minha vida, sujar a minha casa, criar uma rotina de chá com leite e Nutella com pão e agora simplesmente pegares nas malas e não voltares nunca mais?
Quem te deixou esvaziar o quarto, empacota-lo e leva-lo para fora da nossa casa (tão acolhedoramente) suja e desorganizada?
Quem te deixou tornares-te minha amiga e fugires sem pedir permissão?

Pelo menos deixaste os biscoitos.

13 enero 2007

enriquecer a psiquiatra

Ela estava ali, deitada, de olhos fixos e penetrados no branco da parede recém-pintada.
Sentia uma dor aguda, forte, sincera, feminina, que lhe invadia o corpo e gritava-lhe palavras de horror. Não conseguia controlar os membros.
Estava lúcida e não podia falar.
Dos seus olhos esbugalhados e inexpressivos caíam lágrimas de sofrimento dilatado.
A sirene da ambulância chegou e durante o caminho falavam-lhe com esperança de que estivesse a ouvir. A luz vermelha-azul apagou-se e a senhora foi isolada do mundo, como micróbio indesejado, doença contagiosa, insecto inoportuno.
Diagnosticada, deixaram-na sentir a família. Os tubos e a tosse catarrenta impediam-na de ver.
Volta para casa depressa e recupera o teu mau feitio refilão de mãe-galinha, tia-coruja, esposa dedicada. Volta para casa e zanga-te grita e esperneia. Volta para casa e seca o rio de lágrimas que provocaste. Estão todos fartos de enriquecer a psiquiatra.

12 enero 2007

prateleiras de sentimentos

Vinha estramente feliz passeando pela rua. Esbarrou em mim e deu-me um abraço apertado. Não largou mais.
Ele falava palavras (revoltantemente) sábias. Defendia as mesmas teorias inconsequentes de sempre e fazia-me rir lágrimas de revolta e alegria.
Era bom.
Caminhámos entre prateleiras de sentimentos confusos e coloridos que mais pareciam um supermercado barato. Trocamos cromos e estojos de pintar. Rimos e chorámos sentimentos instáveis.
E no fim, quando o autocarro chegou, fiquei confusa. Era o 52, disse, e eu confiei nele.
Mais uma vez.

10 enero 2007

palavras beijadas

Há dias em que apetece fugir, tirar a cola do corpo, soltar as correntes, chorar e soluçar como criança pequena que corre para o colo da mãe. Às vezes faz falta um carinho no cabelo, um elogio sincero, um miminho sem sentido. Procuro olhos castanhos que me digam que estou a fazer a coisa certa, quero caretas espalmadas no vidro e um carro azul. Quero ter a certeza que a conta de telefone continua a subir, que a gasolina continua a aumentar, que os nomes não param de inovar e que o gato se chama Leo.
Paro para pensar e tremo.
Tremo com o calor abrasador e com a chuva tépida, com o silêncio torturante de primos tecnológicos. Tremo com os namorados que se abraçam entre palavras de amor meio-ditas-meio-beijadas. Tremo de medo da realidade e das palavras ditas por hábito.
Olha-me nos olhos, faz um sorriso de covinhas e diz-me (como só tu sabes fazer) que tudo vai acabar bem. Por favor.

06 enero 2007

gosto de quero mais

Há experiências que nos fazem crescer e aquelas nos fazem gritar. Há experiências que nos fazem querer fugir e aquelas de têm gosto de quero mais.
Há dias em que nada se passa e o sol brilha azul no nevoeiro das montanhas, há dias em que o casaco queima, a comida cai, o telefone toca, os olhos molham-se, o estudo não rende, a faculdade está fechada e a porta não pára de se abrir.
Há dias de calças largas e óculos sujos de tanto ver, em que as costas doem e falta uma posição, um local, um amigo, uma conversa perfeita. Depois há aqueles dias… aqueles dias… que queremos cheguem rápido, que passem devagar, que corram saltam e gritem. Porque são esses (para quase todo o comum mortal, carne-osso-musculos, de vida quotidiana e dias controlados pelo relógio) os dias decisivos, as jornadas onde a língua se confunde de tanto falar, e o lábio reclama de tanto sorrir.
Mas há aquelas experiências intensas, onde até o leite quente ao fim da tarde e os programas de adolescentes à hora de almoço resultam em cumplicidades surpreendentes que sabem a molho picante com arroz cru e a salada sem tempero com massa de molho enlatado.

04 enero 2007

fim

“Morti in una produzione massificata, un Paese dopo l’altro, un mese dopo un altro mese, un anno dopo ancora un anno.
Morti d’inverno e d’estate.
Morti in una promiscuità così famigliare da diventare, alla fine, per alcune, noiosa.
Morti un una quantità così angosciosamente mostruosa che quasi si trovi da odiarli.
Queste cose, voi che siete a casa non dovete nemmeno provare a comprenderle. Per voi che siete a casa, quelli sono soltato numeri.
Talvolta è un vostro vicino, che è partito per non tornare più.
Ma voi non avete visto steso lì per terra, grigio, grotesco, sul cielo d’una strada di campagna.
Questa è la differenza.”
Assim escreveu Verdi Pyle quando, em 1945, numa ilha do Pacifico, encontraram o corpo de Ernie ainda com a marca da guerra americano-japonesa nas pontas dos dedos.