Não gosto da vidinha mais ou menos. Do sim, mas não. Do não, mas sim.E então concluo que há alturas em que temos de saber dizer adeus. Despedir-nos. Parar tudo e sair dignamente. Fechar este capítulo e procurar outra inspiração.
Isto é como um banho morno. Odeio água assim-assim. Mas estou ali, ensaboando-me debaixo daquele duche sem graça e penso: “Que preguiça de sair daqui, pegar na toalha, passar frio, e ir até à cozinha para subir o nível da caldeira”. Então suspiro e digo, Melhor assim que sem agua. E sigo cantalorando debaixo dessa água tão sonsinha, tão indiferente, tão correcta. Mas que pelo menos lava.
10 noviembre 2010
03 noviembre 2010
Menina chinfrineira
Ele diz que sou chinfrineira. Chinfri, quê? Que faço barulho, algazarra, berraria. E eu revejo-me nessa chinfrinece. Às vezes queria ser diferente. Mais calada, mais dócil, mais observadora. Às vezes contenho-me e sinto-me estranha. Diabo, sai deste corpo! E volto àquela menina histérica, à voz alta e movimentos desengonçados. Falando por braços, cotovelos e mãos. E alguém reclama. Torço o nariz e reviro os olhos. Então vem o outro e diz que tenho de controlar o mau humor. Que não posso chatear-me tanto, blablablá. E eu aproveito e reclamo dessa critica. Que sou assim, que se gosta gosta, se não gosta, sai da frente. E então fui bruta e chamam-me “borde”. Para me defender explico-me. Rio-me da situação, dou abraços, beijinhos e gritinhos. E, que surpresa, estou de volta à menina chinfrineira.
06 octubre 2010
Anarquia do sentimento
Abaixo as etiquetas, os rótulos e os organizadores. Abaixo as categorias e os separadores. Abaixo os cargos. Que morra a ordem, a espécie e a preparação. Virei anarquista. Quero poder sentir sem justificar, pensar sem enquadrar e viver sem explicar. Quero poder rimar. Que cada dia seja uma incógnita e cada manhã um novo sentimento. Se quero fazer, faço, se quero dizer, digo. Tirem-me essas amarras que herdei da vida, esse colete branco tão difícil de desapertar. Porque há perguntas que não sei responder, questões de réplica hesitante. Queria apenas dizer-lhes que sinto sem categoria, mas isso soa tão foleiro. Então nego. Melhor negar que precipitar-se, melhor negar que errar, melhor negar que cair e fazer ferida.
Porque a anarquia encaixa tão bem, é o número perfeito, a cor adequada, o tecido exacto para aquilo que criámos. Não tenhemos nem isto, nem aquilo, nem o outro. Vivemos uma anarquia sentimental. E isso, por agora, faz-me feliz.
Porque a anarquia encaixa tão bem, é o número perfeito, a cor adequada, o tecido exacto para aquilo que criámos. Não tenhemos nem isto, nem aquilo, nem o outro. Vivemos uma anarquia sentimental. E isso, por agora, faz-me feliz.
24 septiembre 2010
A casa
A nossa casa é aquele sítio onde crescemos. Não, corrige. É o lugar onde temos todas as nossas coisas. Errado. Onde vivem os nossos pais. Nem sempre. Onde estão as recordações. Mentira. É aquele lugar que tem cheiro familiar, gosto de tempero da avó e histórias em cada esquina. Isso é só para os mais sortudos.
Casa é tudo aquilo que levamos numa mudança. E tantas outras coisas que o camião não pode carregar. Casa é mais do que matéria. Isso sim. Casa é onde nos sentimos em casa. Mas quando aquela que era a nossa casa é divida em três caixotes: dar, levar, ficar; quando o nosso perfume é substituído pelo cheiro a fita-cola; quando a nossa boneca de infância é encaixotada sem piedade… Quando vemos tudo isso acontecer, concluímos: nós somos a nossa própria casa. Nem pais, nem amigos, nem bonecas. Nem moveis, nem edifícios, nem vizinhos. A nossa casa somos nós. Eu. Carne, osso e espirito. O resto é só romance.
Casa é tudo aquilo que levamos numa mudança. E tantas outras coisas que o camião não pode carregar. Casa é mais do que matéria. Isso sim. Casa é onde nos sentimos em casa. Mas quando aquela que era a nossa casa é divida em três caixotes: dar, levar, ficar; quando o nosso perfume é substituído pelo cheiro a fita-cola; quando a nossa boneca de infância é encaixotada sem piedade… Quando vemos tudo isso acontecer, concluímos: nós somos a nossa própria casa. Nem pais, nem amigos, nem bonecas. Nem moveis, nem edifícios, nem vizinhos. A nossa casa somos nós. Eu. Carne, osso e espirito. O resto é só romance.
14 agosto 2010
Dois improváveis
Quem vê aqueles dois por ai deve rir-se. Gargalhar da improbabilidade daquela imagem. Da incerteza de uma razão numérica, equitativa, um motivo racional para uma realidade tão desconcertante.
São noites de açúcar e dias salgados. Franzidos de testa e rugas pé-de-galinha. Insultos entre dentes e elogios a gritos. Abraços. São agridoce, esses dois, sempre pendentes dessa incerteza que os faz mais felizes, aventureiros, jovens inconsequentes num bar manchado de cerveja.
E quando passam na rua tiram-lhes fotos, sussurram comentários, dão-lhes moedinhas. São a atracção da feira. Dois únicos com falta de encaixe. Dois improváveis que se juntam e se olham com uma cumplicidade que faz saltar os alarmes. Porque se esses dois são uma verdade feliz, então o mundo é uma piada.
São noites de açúcar e dias salgados. Franzidos de testa e rugas pé-de-galinha. Insultos entre dentes e elogios a gritos. Abraços. São agridoce, esses dois, sempre pendentes dessa incerteza que os faz mais felizes, aventureiros, jovens inconsequentes num bar manchado de cerveja.
E quando passam na rua tiram-lhes fotos, sussurram comentários, dão-lhes moedinhas. São a atracção da feira. Dois únicos com falta de encaixe. Dois improváveis que se juntam e se olham com uma cumplicidade que faz saltar os alarmes. Porque se esses dois são uma verdade feliz, então o mundo é uma piada.
26 julio 2010
Gato selvagem
Engano-me. Engano-me dia a dia pensando em ti como penso em mim. Pensando em ti como gostaria que fosses. Pensando em ti em modelos passados. Não és, mas às vezes pareces ser. Fecho os olhos e por momentos, fragmentos de momentos, deixo-me levar por essa espiral de algodão doce perfumado, por esse cobertor plumas dos contos infantis. E somos felizes. Como as perdizes.
E quando dizes que não, como quem convida para beber um copo, quando dizes que não, como quem diz que sim, quando dizes que não, eu engulo. Engulo e rebaixo-me neste meu papel secundário, neste meu pseudo-não-papel, como gosto de chamar.
Porque se não sou nada, nada posso exigir. Se não existo, não tenho voz. E calo, enquanto tu continuas, feliz, conjugando os teus verbos no singular, estabelecendo a tua simples lista de prioridades. Exercendo o desapego nessa tua vida contraditória de gato selvagem.
E quando dizes que não, como quem convida para beber um copo, quando dizes que não, como quem diz que sim, quando dizes que não, eu engulo. Engulo e rebaixo-me neste meu papel secundário, neste meu pseudo-não-papel, como gosto de chamar.
Porque se não sou nada, nada posso exigir. Se não existo, não tenho voz. E calo, enquanto tu continuas, feliz, conjugando os teus verbos no singular, estabelecendo a tua simples lista de prioridades. Exercendo o desapego nessa tua vida contraditória de gato selvagem.
25 julio 2010
A negação
Eu sempre fui aquela que se vai.
Sempre soube que é mais fácil fugir que dizer adeus, mais fácil ir que ficar, mais fácil negar que enfrentar.
Sempre fui pelo mais fácil.
Sempre fui. Nunca fiquei.
E agora dizem-me que se vão e eu tenho vontade de me ir antes. Só para não ficar. Tenho vontade de pegar em tudo e fugir. De fazer um drama, colar-lhes os pés ao chão, dizer que melhor infeliz e perto, que feliz e longe. Dizer-lhes tudo aquilo em que não acredito.
Porque não importa. Eles se vão. Não há maneira, eles se vão.
E então eu nego.
Finjo que não é comigo. La-la-la-la-la. Que não é verdade até ao derradeiro adeus, que não acontece até acontecer, que sofrer por antecedência é coisa de fracos. E a mim, ensinaram-me a ser forte. Então engole o choro e pensa noutra coisa. Nega até ao último momento. Nega que desta vez, és tu quem vai ficar. E sofrer.
Sempre soube que é mais fácil fugir que dizer adeus, mais fácil ir que ficar, mais fácil negar que enfrentar.
Sempre fui pelo mais fácil.
Sempre fui. Nunca fiquei.
E agora dizem-me que se vão e eu tenho vontade de me ir antes. Só para não ficar. Tenho vontade de pegar em tudo e fugir. De fazer um drama, colar-lhes os pés ao chão, dizer que melhor infeliz e perto, que feliz e longe. Dizer-lhes tudo aquilo em que não acredito.
Porque não importa. Eles se vão. Não há maneira, eles se vão.
E então eu nego.
Finjo que não é comigo. La-la-la-la-la. Que não é verdade até ao derradeiro adeus, que não acontece até acontecer, que sofrer por antecedência é coisa de fracos. E a mim, ensinaram-me a ser forte. Então engole o choro e pensa noutra coisa. Nega até ao último momento. Nega que desta vez, és tu quem vai ficar. E sofrer.
22 julio 2010
James Bond
Disseste que bom. Contra todas as minhas expectativas disseste que-bom. Assimila, assimila. Q-u-e-b-o-m. B-b-b-o-o-o-m-m-m.
E então congelei.
Lembrei-me de tudo o que tinha anotado para te dizer e acabei por calar, todas as conversas que escrevi na minha cabeça e, instintivamente, apaguei.
E de rascunho em rascunho, construíram-se romances inteiros, auto-estradas de histórias desinteressantes, momentos que moldam a nossa vida. As setas, pela primeira vez, vão em direcções opostas. Radicalmente opostas.
Tu no deserto, eu, nas ondas da praia.
Tu com som e eu com palavras. Tu, indiferente, eu, congelada.
E no meio deste caos averbal, fizemo-nos estranhos.
Desconhecidos do pé à cabeça. Do pensamento à alma.
Ignorados. Incógnitos.
Desprezíveis, talvez.
E foi então que hoje o teu agente secreto falhou. Caiu-te o disfarce, a máscara e a pistola. Esqueceste-te que neste jogo, cada palavra é uma bala. E feriste.
Então apercebi-me que estou a jogar sozinha e que nem sequer és tão sexy como o James Bond.
Apertei o off e guardei o brinquedo no armário.
Quem sabe outro dia.
E então congelei.
Lembrei-me de tudo o que tinha anotado para te dizer e acabei por calar, todas as conversas que escrevi na minha cabeça e, instintivamente, apaguei.
E de rascunho em rascunho, construíram-se romances inteiros, auto-estradas de histórias desinteressantes, momentos que moldam a nossa vida. As setas, pela primeira vez, vão em direcções opostas. Radicalmente opostas.
Tu no deserto, eu, nas ondas da praia.
Tu com som e eu com palavras. Tu, indiferente, eu, congelada.
E no meio deste caos averbal, fizemo-nos estranhos.
Desconhecidos do pé à cabeça. Do pensamento à alma.
Ignorados. Incógnitos.
Desprezíveis, talvez.
E foi então que hoje o teu agente secreto falhou. Caiu-te o disfarce, a máscara e a pistola. Esqueceste-te que neste jogo, cada palavra é uma bala. E feriste.
Então apercebi-me que estou a jogar sozinha e que nem sequer és tão sexy como o James Bond.
Apertei o off e guardei o brinquedo no armário.
Quem sabe outro dia.
13 julio 2010
Suspiro
Apareceste quando tudo se avisava tão negro. Quando a vida não queria mudar, quando as correntes do passado me faziam feridas nas mãos. Quando, prisioneira, dava aquela batalha como perdida. E então chagaste, tão normal, tão cheio de ti. E, nesse momento, suspirei. E depois suspirei pelo suspiro. E uma vez mais pelo suspiro do suspiro. Meti-me num ciclo vicioso de respiração sonora. E fui feliz.
06 julio 2010
Chauffeur
E de repente estávamos ali, em plena saída do liceo, em pleno “aina men, bueda louco”, em plenas duvidas existências. Porque se ele gosta de mim, mas eu gosto do outro, e o outro gosta dela, então ela no fundo gosta mesmo é do que gosta de mim. Portanto a vida não tem sentido. Existência injusta. E partimos para a ignorância. Bebemos álcool barato e fumamos dois cigarros com uma postura de “quem é que manda aqui?”. Pegamos no primeiro da esquina e buscamos-lhe uma qualidade. De preferência que seja giro, de boas famílias. Mas se aperta o desespero não faz mal, serve que seja mais velho, que, sei lá, conheça os RPs das discotecas. Pronto, está bem, não sejamos tão exigentes. Que tenha um carro, basta que tenha um carro que um chauffeur, precisa-se. Até que um dia pegamos nesse carro, no dito carro do chauffeur improvisado e perdemo-nos no mundo. Fazem-nos uma surpresa adolescente e quando nos damos conta estamos ali, com dores nas costas, sorriso derretido e abraço apertado. Pensamos, preciso arranjar outra desculpa para gostar tanto dele. A do chauffeur não está mais a colar.
Gloriosos tempos de adolescência.
Gloriosos tempos de adolescência.
01 julio 2010
O unicórnio
Há um unicórnio no meu quarto. Sim. Um unicórnio gigante que assombra a minha vida. Um quem sabe um dia que não me deixa descansar. Ele desfila, esbelto, falando e vendendo um futuro feliz. Tem voz doce e tom meloso. Historias viajantes, dia-a-dia apaixonado, noites de música e cinema, tardes de passeio e jogos na relva.
O problema é que às vezes, em lapsos de consciência, acredito nele, esse mentiroso, farsante, hipócrita. E então a vida muda de tom. Ganha uma serenidade prazenteira, uma segurança de destino traçado, de vidas cruzadas, de forças exteriores ao mundo. E essa ideia faz-me sorrir. Eu, tonta, imbecil, sorrio. Até que o lapso passa, a banda sonora risca-se, a razão ganha a batalha, abre-se a janela e por ela entra a vida real. Fere os olhos, magoa o corpo. Nódoas negras de projecções fictícias de uma menina sonhadora. A cabeça lateja de um desespero angustiante. Hiperventilação.
Raio do unicórnio.
O problema é que às vezes, em lapsos de consciência, acredito nele, esse mentiroso, farsante, hipócrita. E então a vida muda de tom. Ganha uma serenidade prazenteira, uma segurança de destino traçado, de vidas cruzadas, de forças exteriores ao mundo. E essa ideia faz-me sorrir. Eu, tonta, imbecil, sorrio. Até que o lapso passa, a banda sonora risca-se, a razão ganha a batalha, abre-se a janela e por ela entra a vida real. Fere os olhos, magoa o corpo. Nódoas negras de projecções fictícias de uma menina sonhadora. A cabeça lateja de um desespero angustiante. Hiperventilação.
Raio do unicórnio.
A vinoteca
Há dias em que acho que vivemos numa bolha. Numa bolha de sabão apertadinha e transparente com reflexos violeta e cheiro a detergente perfumado. E nós ali dentro, sorridentes. O mundo pode cair, o telefone morrer, o relógio espernear. Nós não ouvimos. A nossa bolha é a prova de som.
Só que o calendário passa e com os riscos há sempre um despiste, um pensamento mais profundo, mais racional, mais sei-lá-o-quê. Um algo que, pleft, rebenta o nosso refúgio de passeios e abraços, de conversas na cozinha, de pequenos-almoços com dedos sujos de jornal. Pleft. Vem o mundo e leva-te com ele.
E então fazes-te outro, mais tu, mais o que tu queres ser. Menos eu. Menos nós naquela redoma com gosto de sal. E desse eu não gosto. Tão banal, tão homem moderno, tão centrado no seu mundinho de rotinas tarde-noite, tão pouco aquele eu que um dia encaixou tão bem numa bolha de sabão que voava perdida pela cidade de cristal.
Se calhar isto são só rabugisses de uma sonhadora. Ou, quiçá, visões quadradas de uma velha viciada. Se calhar o melhor seria parar de escrever e ir afogar as minhas mágoas na vinoteca mais próxima. Não sei, diz-me tu.
Só que o calendário passa e com os riscos há sempre um despiste, um pensamento mais profundo, mais racional, mais sei-lá-o-quê. Um algo que, pleft, rebenta o nosso refúgio de passeios e abraços, de conversas na cozinha, de pequenos-almoços com dedos sujos de jornal. Pleft. Vem o mundo e leva-te com ele.
E então fazes-te outro, mais tu, mais o que tu queres ser. Menos eu. Menos nós naquela redoma com gosto de sal. E desse eu não gosto. Tão banal, tão homem moderno, tão centrado no seu mundinho de rotinas tarde-noite, tão pouco aquele eu que um dia encaixou tão bem numa bolha de sabão que voava perdida pela cidade de cristal.
Se calhar isto são só rabugisses de uma sonhadora. Ou, quiçá, visões quadradas de uma velha viciada. Se calhar o melhor seria parar de escrever e ir afogar as minhas mágoas na vinoteca mais próxima. Não sei, diz-me tu.
22 junio 2010
Ama e senhora
Disseste-me que não podia ter saudades tuas. E eu não gostei. Não gostei nada, tsss, tsss.
Porque sou menina expatriada, imigrante de profissão. Sou cidadã do mundo com pós doutorado em lágrimas de despedida. Sou ama e senhora da saudade. E o que esse teu espírito livre e caprichoso não te deixa ver é que saudade é coisa boa. Saudade come-se ao pequeno-almoço molhado no leite e faz-nos sorrir quando na rádio toca determinada música. Uma espanholada, sei lá.
Nessa tua cabeça de pessoa moderna e soberana, saudade é dependência. E isso te faz tão pequeno, tão mesquinho, tão egoísta. Tantas coisas que podias não ter sido. E tal como eu não consigo evitar essa saudade com gosto de cerejas, tu tampouco sabes olhar-me sem essa tua superioridade automática de quem acha que a vida é o que a nossa cabeça pensa dela. Uma vez mais erraste. Não sei porque o digo. Tu jamais aceitarás essa crítica, como nunca aceitaste qualquer outra, dirás que tudo isto é mais um capricho de uma menina pequena. E já agora, juntado a fama ao proveito, tenho de te dizer que apesar das tuas sábias recomendações,
eu tive e tenho saudades tuas.
Língua de fora, bate o pé no chão e vira as costas, a menina amuada.
Porque sou menina expatriada, imigrante de profissão. Sou cidadã do mundo com pós doutorado em lágrimas de despedida. Sou ama e senhora da saudade. E o que esse teu espírito livre e caprichoso não te deixa ver é que saudade é coisa boa. Saudade come-se ao pequeno-almoço molhado no leite e faz-nos sorrir quando na rádio toca determinada música. Uma espanholada, sei lá.
Nessa tua cabeça de pessoa moderna e soberana, saudade é dependência. E isso te faz tão pequeno, tão mesquinho, tão egoísta. Tantas coisas que podias não ter sido. E tal como eu não consigo evitar essa saudade com gosto de cerejas, tu tampouco sabes olhar-me sem essa tua superioridade automática de quem acha que a vida é o que a nossa cabeça pensa dela. Uma vez mais erraste. Não sei porque o digo. Tu jamais aceitarás essa crítica, como nunca aceitaste qualquer outra, dirás que tudo isto é mais um capricho de uma menina pequena. E já agora, juntado a fama ao proveito, tenho de te dizer que apesar das tuas sábias recomendações,
eu tive e tenho saudades tuas.
Língua de fora, bate o pé no chão e vira as costas, a menina amuada.
16 junio 2010
Variações
Conheço bem aquele sorriso. Aquele sorriso e as suas variações. Houve aquele que fizeste no dia das tesouras do Eduardo abraçadas num sofá de improviso. E o que veio um pouco mais tarde, com um amanhecer não dormido de gosto ácido a tangerina. Esse parecia-se ao daquele concerto dos sapatos perdidos e encontrados. Lembras-te? Mas falando de concerto, que conste que o outro, o dos aplausos em pé de satisfação, foi um sorriso diferente, mais calmo, mais profundo. Com gosto a café.
Claro que tampouco vale compra-lo ao que gastaste e gastaste no dia dos ciganos à beira mar. Mas isso, mais do que um sorriso, foi uma história.
É que esse teu sorriso, o famoso, também tem a variação que estreaste com sotaque do norte, entre uma guitarra e um jardim. E horas mais tarde, comendo bombas calóricas com um toquesinho de picante. Depois há também o seu primo, o das mochilas às costas. Mas aí é jogo sujo. Que esse tem vantagem competitiva.
Até que outro dia conheci uma nova variação. Vinha com um brilho diferente nos olhos, uma bochecha meio corada, com a covinha a querer mostrar-se. Tinha cheiro a novidade, a perfume de flores e abraços apertados de êxtase. Tinha som de música indie escutada e discutida em quilómetros de costa e auto-estrada. Tinha sabor a sol e naturalidade. A noites sem dormir pelas avenidas dos eléctricos. Era uma nova variação daquele meu velho e conhecido sorriso. Mas essa, pela primeira vez, não era para mim.
Claro que tampouco vale compra-lo ao que gastaste e gastaste no dia dos ciganos à beira mar. Mas isso, mais do que um sorriso, foi uma história.
É que esse teu sorriso, o famoso, também tem a variação que estreaste com sotaque do norte, entre uma guitarra e um jardim. E horas mais tarde, comendo bombas calóricas com um toquesinho de picante. Depois há também o seu primo, o das mochilas às costas. Mas aí é jogo sujo. Que esse tem vantagem competitiva.
Até que outro dia conheci uma nova variação. Vinha com um brilho diferente nos olhos, uma bochecha meio corada, com a covinha a querer mostrar-se. Tinha cheiro a novidade, a perfume de flores e abraços apertados de êxtase. Tinha som de música indie escutada e discutida em quilómetros de costa e auto-estrada. Tinha sabor a sol e naturalidade. A noites sem dormir pelas avenidas dos eléctricos. Era uma nova variação daquele meu velho e conhecido sorriso. Mas essa, pela primeira vez, não era para mim.
26 mayo 2010
Os isleños
Os isleños foram os primeiros a chegar. Tornaram-se imediatamente donos e detentores desse pedaço rocha perdido no meio de uma água gelada de peixes. Eram rei, senhor e príncipe. Princepessa, dessas do cinema italiano.
E depois de muito pensar, optaram por viver uma anarquia organizada, já que, dadas as circunstancias, a maioria absoluta seria, deveras, um tema complicado. Criaram, então, um inovador sistema político que se sustentava com apenas uma regra: dentro daqueles domínios as coisas faziam-se de cinco em cinco. Ora ai está uma boa lei.
Toca a comer cinco maçãs, e cinco caroços, dar meia dezena de passeios e cinco olhares, daqueles de corar a ponta do nariz. Cinco, os minutos babados de boca na toalha e um v romano de furinhos da perdida orelha do mar. Que descanse em paz.
Uma mão cheia de dedos entrelaçados, cabelos enrolados e caracóis rebeldes. Uma língua de fora. Dessas não havia cinco. Mas a regra do seis menos um era muito rígida e não sobreviviam nem os sorriso-gargalhadas. Cinquenta? Vá, acrescenta-lhe um zero e negócio fechado.
No fim do dia, os donos e senhores da meia dezena abandonaram o seu reino, deixaram gosto na boca ao futuro legado e, entre furacões e rodopios, desocuparam a coroa dos isleños.
Ao chegar a terra quiseram dizer algo, fazer um discurso pomposo. Coisas de filme. Mas só saiu um gesto. Um, não, cinco.
E depois de muito pensar, optaram por viver uma anarquia organizada, já que, dadas as circunstancias, a maioria absoluta seria, deveras, um tema complicado. Criaram, então, um inovador sistema político que se sustentava com apenas uma regra: dentro daqueles domínios as coisas faziam-se de cinco em cinco. Ora ai está uma boa lei.
Toca a comer cinco maçãs, e cinco caroços, dar meia dezena de passeios e cinco olhares, daqueles de corar a ponta do nariz. Cinco, os minutos babados de boca na toalha e um v romano de furinhos da perdida orelha do mar. Que descanse em paz.
Uma mão cheia de dedos entrelaçados, cabelos enrolados e caracóis rebeldes. Uma língua de fora. Dessas não havia cinco. Mas a regra do seis menos um era muito rígida e não sobreviviam nem os sorriso-gargalhadas. Cinquenta? Vá, acrescenta-lhe um zero e negócio fechado.
No fim do dia, os donos e senhores da meia dezena abandonaram o seu reino, deixaram gosto na boca ao futuro legado e, entre furacões e rodopios, desocuparam a coroa dos isleños.
Ao chegar a terra quiseram dizer algo, fazer um discurso pomposo. Coisas de filme. Mas só saiu um gesto. Um, não, cinco.
20 mayo 2010
Politicamente incorrecto
Fugiste. Já tinhas avisado tantas vezes. Ameaçado, assustado, anunciado. Até que um dia, chegou o dia. Pegaste nessa tua vida desorganizada, nos teus projectos intermináveis, no teu registo do nosso passado e correste. Correste até cansar.
Criaste uma nova história para ti, a história que tanto quisemos criar juntos.
E o que ficou foi uma referência interminável às nossas piadas internas, uma menina chata que fala sempre do mesmo. Daquela viagem de pão e sol, dos concertos de pés da areia, daquelas tardes-noites de pipocas e gomas ácidas. Dos personagens que aprendemos juntos a idolatrar.
Mas eu sou menina mimada, !sabes disso como ninguém!, e queria que voltasses. Tu, e essa tua cara de pato alegre, a tua vozinha de manha perdida, e o teu jeito confortável de ser. Tu e os nossos filmes, as conversas quotidianas, o fui-ao-shopping-e-comprei-umas-calças-novas. Tu e as tuas idas ao shopping.
Eu sei que não vais voltar. Eu entendo. Mas esta é só a minha maneira desengonçada e politicamente incorrecta de dizer-te que fazes falta.
Criaste uma nova história para ti, a história que tanto quisemos criar juntos.
E o que ficou foi uma referência interminável às nossas piadas internas, uma menina chata que fala sempre do mesmo. Daquela viagem de pão e sol, dos concertos de pés da areia, daquelas tardes-noites de pipocas e gomas ácidas. Dos personagens que aprendemos juntos a idolatrar.
Mas eu sou menina mimada, !sabes disso como ninguém!, e queria que voltasses. Tu, e essa tua cara de pato alegre, a tua vozinha de manha perdida, e o teu jeito confortável de ser. Tu e os nossos filmes, as conversas quotidianas, o fui-ao-shopping-e-comprei-umas-calças-novas. Tu e as tuas idas ao shopping.
Eu sei que não vais voltar. Eu entendo. Mas esta é só a minha maneira desengonçada e politicamente incorrecta de dizer-te que fazes falta.
19 mayo 2010
A paradiña
Na vida, às vezes, há que fazer uma paradiña. Há que deixar de lado as teorias, os rótulos e as etiquetas. Acalmar a histeria das ideias, dar um beijinho de boa noite aos prazos de validade pré estabelecidos. Pegar em todos os preconceitos, inimigos e pensamentos baratos. Juntar tudo isso e enfiar no congelador.
Quem sabe um dia esses alimentos de cérebros agitados derretam e voltem às grandes manchetes dos informativos. Quem sabe até se tornem realidade. Quizás.
Mas naquele dia pediram-me uma resposta. Uma palavra, um detalhe que pudesse organizar a vida. Não houve tempo para grandes reflexões. Chegou o sol e, com ele, aquela manhã de dia normal. Fizemos uma paradiña. E, pelos vistos, resultou.
Quem sabe um dia esses alimentos de cérebros agitados derretam e voltem às grandes manchetes dos informativos. Quem sabe até se tornem realidade. Quizás.
Mas naquele dia pediram-me uma resposta. Uma palavra, um detalhe que pudesse organizar a vida. Não houve tempo para grandes reflexões. Chegou o sol e, com ele, aquela manhã de dia normal. Fizemos uma paradiña. E, pelos vistos, resultou.
12 mayo 2010
A ressaca do adeus
Mais um dia daqueles. Outro, outra vez, outro. E só ontem me passou pela cabeça que deveria começar a colecciona-los.
Guardaria o adeus em uma caixa azul com um grande laço de cetim. Já tenho acumulados tantos, muitos, demasiados. Poderia fazer com isto uma valente fortuna. O adeus de choro engolido e de choro chorado. O de abraço apertado que estala os ossos. Aquele que leva um beijo que jamais esqueceremos. O adeus contado e recontado em noites de ronha debaixo da manta do sofá. O adeus que vira as costas e não olha para trás. O que gira a cabeça. O adeus que se disfarça de até já e aquele que tem pressa e, quando vemos, já passou.
No fundo, o que eu queria mesmo era que o adeus fosse um bolo de chocolate. Que boa ideia! Coleccionar bolos de chocolate. Ou sacos recheados de gomas coloridas. Não, espera, que seja leite condensado comido à colher. Esquece, tanto faz, não me importa. Só queria que o adeus fosse doce. Docinho.
E se for possível, senhores lá de cima, queria que o adeus tivesse uma voz meiguinha e olhos de cão sem dono, que soubesse olhar, sorrir e abraçar. Sim, que o adeus soubesse abraçar. Queria que fosse um menino espontâneo, desses que caem na graça das avozinhas.
Porque eu presumo sempre que eu e ele somos amigos, velhos conhecidos de outras batalhas. Mas na verdade, e mesmo que ele pareça inofensivo e pouco amargo, há um dia que a ressaca chega. E de adeus passamos a tenho saudades. É o ciclo normal da vida. Ou isso querem que pensemos.
Se pelo menos a ressaca soubesse a bolo de chocolate com cobertura de brigadeiro...
Guardaria o adeus em uma caixa azul com um grande laço de cetim. Já tenho acumulados tantos, muitos, demasiados. Poderia fazer com isto uma valente fortuna. O adeus de choro engolido e de choro chorado. O de abraço apertado que estala os ossos. Aquele que leva um beijo que jamais esqueceremos. O adeus contado e recontado em noites de ronha debaixo da manta do sofá. O adeus que vira as costas e não olha para trás. O que gira a cabeça. O adeus que se disfarça de até já e aquele que tem pressa e, quando vemos, já passou.
No fundo, o que eu queria mesmo era que o adeus fosse um bolo de chocolate. Que boa ideia! Coleccionar bolos de chocolate. Ou sacos recheados de gomas coloridas. Não, espera, que seja leite condensado comido à colher. Esquece, tanto faz, não me importa. Só queria que o adeus fosse doce. Docinho.
E se for possível, senhores lá de cima, queria que o adeus tivesse uma voz meiguinha e olhos de cão sem dono, que soubesse olhar, sorrir e abraçar. Sim, que o adeus soubesse abraçar. Queria que fosse um menino espontâneo, desses que caem na graça das avozinhas.
Porque eu presumo sempre que eu e ele somos amigos, velhos conhecidos de outras batalhas. Mas na verdade, e mesmo que ele pareça inofensivo e pouco amargo, há um dia que a ressaca chega. E de adeus passamos a tenho saudades. É o ciclo normal da vida. Ou isso querem que pensemos.
Se pelo menos a ressaca soubesse a bolo de chocolate com cobertura de brigadeiro...
11 mayo 2010
Asas em segunda mão
Atenção, que voar é coisa difícil. Não é como andar de bicicleta sem esfolar-se, alimentar elefantes ou passar vinte horas a viver de uma hormona com nome de remédio. Não podes fazer essas coisas. Chegar aí todo relaxado e sorridente com o teu cabelo despenteado e óculos desalinhados. Aparecer do nada e dizer, desinteressadamente, “vamos aprender a voar”. Voar? Voar é coisa de gente demasiado grande ou demasiado pequena. Voar é coisa de gente demasiado e todos sabemos (e tu sabes) que eu sou normal normalinha e os normalíssimos não voam. Mas pronto, desculpas dadas, já sei que não foi tua intenção causar a discórdia. Nunca é. Quase nunca é.
Mas já que insististes tanto, aprendamos.
Leva-me à feira da ladra e ajuda-me a escolher umas asas em segunda mão. E como poupamos na hélice, o orçamento deve chegar para comprar uma faca, ou similar. Pois cortemos as amarras, desfaçamo-nos de todos os pesos. Esses malditos que dão dores nas costas. Livres e leves, falta encontrar mecanismos de soltura. Sei lá, um pouco de açúcar na veia deve chegar. Busquemos um instrutor e procuremos a rota mais indicada. Não esquecer da banda sonora e da cesta de picnic.
Ate que, um dia, quando tudo estiver a postos, provas feitas, material revisado e exames aprovados. Quando tudo estiver okay, chegará a hora decisiva. O momento, ai esse grande momento, em que o instrutor aproxima-se e grita lá de baixo, com a segurança dos seus pés pisando terra: “Hei menina, atira-se ou não?”.
Já te tinha dito que voar era coisa difícil.
Mas já que insististes tanto, aprendamos.
Leva-me à feira da ladra e ajuda-me a escolher umas asas em segunda mão. E como poupamos na hélice, o orçamento deve chegar para comprar uma faca, ou similar. Pois cortemos as amarras, desfaçamo-nos de todos os pesos. Esses malditos que dão dores nas costas. Livres e leves, falta encontrar mecanismos de soltura. Sei lá, um pouco de açúcar na veia deve chegar. Busquemos um instrutor e procuremos a rota mais indicada. Não esquecer da banda sonora e da cesta de picnic.
Ate que, um dia, quando tudo estiver a postos, provas feitas, material revisado e exames aprovados. Quando tudo estiver okay, chegará a hora decisiva. O momento, ai esse grande momento, em que o instrutor aproxima-se e grita lá de baixo, com a segurança dos seus pés pisando terra: “Hei menina, atira-se ou não?”.
Já te tinha dito que voar era coisa difícil.
09 mayo 2010
Sonhatortilhas
Aquela capa preta de estrelas redondas separava-os do mundo. Usavam-na de refúgio para dias maus, de compensação para tardes de conversa em tom de nanas estrangeiras. Ali, naquele esconderijo em espiral, só existiam eles. Dois sonhatortilhas perdidos numa escola de crianças. Somiatruites que somiavan que el seu llit tenia ales. I a mitjanit despegavan i volavan, volavan i volavan.
E debaixo daquele manto de invisibilidade tudo era possível. Podia discutir-se sobre os tinteiros da impressora e o almoço daquela tarde, a salvação do mundo ou o valor do silêncio. Até podiam ficar calados. E essa era uma grande novidade.
Cobertos pela capa mágica, eram tudo o que sempre sonharam e negaram ser. Eram eles sem preconceitos, sem aquelas regras avassaladoras que os deitavam abaixo a cada momento. Eram versões melhores deles mesmos. Eram sonhatortilhas.
E quando aqueles dois ovos fritos e reboçados se escondíamos no cantinho do infinito, o relógio desaparecia do pulso e a razão fugia por uns instantes dessa posição líder. Não havia frio, fome ou sono. Eles eram demovíveis. Porque estavam ali para sentir. E sentiam forte. Sonhavam forte.
E debaixo daquele manto de invisibilidade tudo era possível. Podia discutir-se sobre os tinteiros da impressora e o almoço daquela tarde, a salvação do mundo ou o valor do silêncio. Até podiam ficar calados. E essa era uma grande novidade.
Cobertos pela capa mágica, eram tudo o que sempre sonharam e negaram ser. Eram eles sem preconceitos, sem aquelas regras avassaladoras que os deitavam abaixo a cada momento. Eram versões melhores deles mesmos. Eram sonhatortilhas.
E quando aqueles dois ovos fritos e reboçados se escondíamos no cantinho do infinito, o relógio desaparecia do pulso e a razão fugia por uns instantes dessa posição líder. Não havia frio, fome ou sono. Eles eram demovíveis. Porque estavam ali para sentir. E sentiam forte. Sonhavam forte.
06 mayo 2010
Pucheritos
Ele tem um jeito de ontem à noite, uma maneira caótica de ser. E muitos tiques nervosos.
Ele tem as mão pequenas, pequeninas, e uma cabeça que cresceu mais rápido que as orelhas. Ele é cabeçudo. E eu orelhuda. Que dois.
Então discutimos sobre tudo. Mas sobretudo sobre as coisas que não têm discussão. E ele agora diria que estas frases estão mal construídas. Mas o que ele não sabe, é que foi tudo feito “a posta”, ou, só para dar o braço a torcer, “a propósito”.
Tem pinta de caladinho, de introvertido. Rá. Enganem-se os tontos. Porque quando fala, não se cala e depois ainda pergunta: “Não consegues estar uns minutinhos sem falar?”.
E então eu zango-me, amuo, ou como diríamos por aqui, faço pucheritos. Tudo parte do show, porque já sabemos, que é regra escrita e revisada, que no fim, previsivelmente, quem ganha a batalha sou sempre eu.
Ele tem as mão pequenas, pequeninas, e uma cabeça que cresceu mais rápido que as orelhas. Ele é cabeçudo. E eu orelhuda. Que dois.
Então discutimos sobre tudo. Mas sobretudo sobre as coisas que não têm discussão. E ele agora diria que estas frases estão mal construídas. Mas o que ele não sabe, é que foi tudo feito “a posta”, ou, só para dar o braço a torcer, “a propósito”.
Tem pinta de caladinho, de introvertido. Rá. Enganem-se os tontos. Porque quando fala, não se cala e depois ainda pergunta: “Não consegues estar uns minutinhos sem falar?”.
E então eu zango-me, amuo, ou como diríamos por aqui, faço pucheritos. Tudo parte do show, porque já sabemos, que é regra escrita e revisada, que no fim, previsivelmente, quem ganha a batalha sou sempre eu.
02 mayo 2010
Noites
Ultimamente as noites têm sido curtas. As noites e aquele seu gostinho a frutas tropicais, açúcar, amigos e abraços. Elas e aquele toque tão evitado. O pele-a-pele que um dia fez o olhar estremecer. E então as noites acabam e o sol está ao contrário. Maquilhamo-lo com persianas eléctricas e cobertores black-out.
Porque de noite valem sussurros e a rouquidão tem som de piada, valem erros verbais, gritos desnecessários, valem insultos que se reconciliam em questão de segundos. À noite discutir é parte do protocolo. Não há conversas complexas, nem frases elaboradas. Um ano vive-se em dez minutos. Dez minutos mais dois ou três pormenores engraçados. À noite todos temos um sentido de humor especial.
E quando o dia chega, fechamos os olhos, fazemos beicinho e birras de criança mimada. A luz revela coisas que não queremos ver. Faz-nos mais sérios, mais pensativos, mais regradamente regulados. Por favor noite não te vás embora, não leves contigo esse teu aroma a iogurte com mel.
Porque de noite valem sussurros e a rouquidão tem som de piada, valem erros verbais, gritos desnecessários, valem insultos que se reconciliam em questão de segundos. À noite discutir é parte do protocolo. Não há conversas complexas, nem frases elaboradas. Um ano vive-se em dez minutos. Dez minutos mais dois ou três pormenores engraçados. À noite todos temos um sentido de humor especial.
E quando o dia chega, fechamos os olhos, fazemos beicinho e birras de criança mimada. A luz revela coisas que não queremos ver. Faz-nos mais sérios, mais pensativos, mais regradamente regulados. Por favor noite não te vás embora, não leves contigo esse teu aroma a iogurte com mel.
14 abril 2010
"Todo lo que podríamos haber sido tú y yo si no fueramos tú y yo"*
O que seria de mim e de ti se não fossemos tu e eu? Não sei me entendes, é que sabes, a minha cabeça pensa confuso. O que eu queria saber, a pergunta que não cala neste constante sussurro interior que é o meu cérebro é se nós, se fossemos outros, seriamos alguém.
Penso em tudo o que poderíamos ter sido se, simplesmente, não fossemos nós. Nós e esse nosso masoquismo inato, este pica e foge que nos é tão característico. Nós, e as nossas gargalhadas às três da manhã, os nossos cafés à beira mar, as nossas conversas que aceleram o relógio. Nós e tudo aquilo que nos faz tão adoravelmente incompatíveis.
Nós e este intenso sonho de ser quem não somos.
E então pego em ti e, qual mecânico, vou arranjando-te. Um retoque aqui, e outro ali. Um pouco de óleo, três ou quatro parafusos. Ah, esta peça seria melhor mudar, veio com defeito de fábrica. E depois levo-me também a esse tal retocador divino, peço-lhe uma lavagem a fundo, uma mudança radical, um xis e um ipslon que me faltavam.
E então somos perfeitos. Somos exactamente quem queríamos ser.
Mas, claro está, já não somos tu e eu.
*Albert Espinosa
Penso em tudo o que poderíamos ter sido se, simplesmente, não fossemos nós. Nós e esse nosso masoquismo inato, este pica e foge que nos é tão característico. Nós, e as nossas gargalhadas às três da manhã, os nossos cafés à beira mar, as nossas conversas que aceleram o relógio. Nós e tudo aquilo que nos faz tão adoravelmente incompatíveis.
Nós e este intenso sonho de ser quem não somos.
E então pego em ti e, qual mecânico, vou arranjando-te. Um retoque aqui, e outro ali. Um pouco de óleo, três ou quatro parafusos. Ah, esta peça seria melhor mudar, veio com defeito de fábrica. E depois levo-me também a esse tal retocador divino, peço-lhe uma lavagem a fundo, uma mudança radical, um xis e um ipslon que me faltavam.
E então somos perfeitos. Somos exactamente quem queríamos ser.
Mas, claro está, já não somos tu e eu.
*Albert Espinosa
11 abril 2010
03 abril 2010
Reinventar-se
Naquele dia perdi-me. Perguntavam-me o nome e já não sabia o que responder. Começa por éme, dizia, era a única certeza. Depois a conversa ia crescendo e as minhas convicções diminuíam. Sabia que já não era aquela que tinha sido, a que tinha aprendido a ser. Mas quem era então? Um ser amorfo, estático, errante pelos caminhos da vida. Não tinha filme preferido, nem género musical. Restaurante ou perfume de referencia.
Era o fim. E com ele vinha o princípio
Era o fim. E com ele vinha o princípio
13 marzo 2010
Mentiroso!
Dizes que estás bem, que estás okay, que não há problema. E eu acredito, Ingénua, egocêntrica, não sei, mas acredito.
E agora só me apetece encontrar-te pela rua dar-te um safanão, apertar-te o pescoço e insultar-te da melhor maneira que sei: “Mentiroso!”
E depois iria à televisão, aos programas da tarde, à entrevista com a Júlia Pinheiro. Iria ali, com a minha cara podre e os meus olhos verdes contar-lhes, a eles e a todo o mundo, que um amigo me mentiu e eu, claro, como poderia deixar de ser, apanhei-o numa esquina e pumbas. Espera!, que não me mal interpretem, pumbas de porrada, valente e poderoso enxerto.
- Vi-o na rua e não resisti. A raiva entrou em ebulição e dei-lhe num murro nas trombas, parti-lhe os dentes, e depois esganei-o até que ficasse roxo pela falta de ar.
Tudo isso porque ele me mentiu, repito vezes e vezes sem conta neste meu sonho-delírio.
Depois, claro está, além de ser estrela de tv, seria alvo de investigações policiais e gabinetes de ética. Seria capa de jornais. Foi ou não legitimo o enfardo que deu aquela jovem ao seu amigo mentiroso?
E as pessoas discutiriam o nosso drama nos cafés, nas páginas de sociedade, desse lixo virtual que é a blogosfera.
Até que um dia, numa entrevista em prime time eu desabafaria perante um jornalista desconcertado:
- É que se ele me tivesse dito a verdade, eu pelo menos poderia ter tentado ajudar…
O mundo se emocionaria perante tal sinceridade e eu sairia ilibada de todas as minhas penas.
Agora saltemos todos os passos e que venha o cara-a-cara.
E agora só me apetece encontrar-te pela rua dar-te um safanão, apertar-te o pescoço e insultar-te da melhor maneira que sei: “Mentiroso!”
E depois iria à televisão, aos programas da tarde, à entrevista com a Júlia Pinheiro. Iria ali, com a minha cara podre e os meus olhos verdes contar-lhes, a eles e a todo o mundo, que um amigo me mentiu e eu, claro, como poderia deixar de ser, apanhei-o numa esquina e pumbas. Espera!, que não me mal interpretem, pumbas de porrada, valente e poderoso enxerto.
- Vi-o na rua e não resisti. A raiva entrou em ebulição e dei-lhe num murro nas trombas, parti-lhe os dentes, e depois esganei-o até que ficasse roxo pela falta de ar.
Tudo isso porque ele me mentiu, repito vezes e vezes sem conta neste meu sonho-delírio.
Depois, claro está, além de ser estrela de tv, seria alvo de investigações policiais e gabinetes de ética. Seria capa de jornais. Foi ou não legitimo o enfardo que deu aquela jovem ao seu amigo mentiroso?
E as pessoas discutiriam o nosso drama nos cafés, nas páginas de sociedade, desse lixo virtual que é a blogosfera.
Até que um dia, numa entrevista em prime time eu desabafaria perante um jornalista desconcertado:
- É que se ele me tivesse dito a verdade, eu pelo menos poderia ter tentado ajudar…
O mundo se emocionaria perante tal sinceridade e eu sairia ilibada de todas as minhas penas.
Agora saltemos todos os passos e que venha o cara-a-cara.
07 marzo 2010
Vida saltimbanca
Mais um dia daqueles. Outro, outra vez, outro. E só ontem me passou pela cabeça que deveria começar a colecciona-los.
Que ideia genial.
Guardaria o adeus numa caixa azul com um grande laço de cetim. Já tenho acumulados tantos, muitos, demasiados. O "eu venho visitar-te" de choro engolido e de choro chorado. O "gosto muito de ti" de abraço apertado que estala os ossos. Aquele "eu ligo-te quando chegar" que leva um olhar e um beijo que jamais esqueceremos. O "até sempre" contado e recontado em noites de ronha debaixo da manta no sofá.
Ficaria rica de tantos "vou ter saudades" e, quando me entregassem um prémio em honra à minha invejável colecção, perguntar-me-iam:
- Como conseguiu chegar a esta quantidade de despedidas?
E então eu diria, orgulhosa:
- É o resultado de uma vida saltimbanca.
Pose. Flash. Troféu na estante.
Parece-me um prémio merecido.
Que ideia genial.
Guardaria o adeus numa caixa azul com um grande laço de cetim. Já tenho acumulados tantos, muitos, demasiados. O "eu venho visitar-te" de choro engolido e de choro chorado. O "gosto muito de ti" de abraço apertado que estala os ossos. Aquele "eu ligo-te quando chegar" que leva um olhar e um beijo que jamais esqueceremos. O "até sempre" contado e recontado em noites de ronha debaixo da manta no sofá.
Ficaria rica de tantos "vou ter saudades" e, quando me entregassem um prémio em honra à minha invejável colecção, perguntar-me-iam:
- Como conseguiu chegar a esta quantidade de despedidas?
E então eu diria, orgulhosa:
- É o resultado de uma vida saltimbanca.
Pose. Flash. Troféu na estante.
Parece-me um prémio merecido.
01 marzo 2010
Mais-que-perfeito
Falhara a sintaxe, o verbo e o predicado. Colapsara o sistema das letras racionais. Conjugara os verbos na ultra perfeição de um indicativo do plural.
Buscáramos os beijos que tínhamos programado um dia na nossa agenda rasgada. Tínhamos encontrado o tempo composto. Mas não funcionara. Não fora suficiente e voltáramos ao singular. Fôramos só um, mas devagar, não corrêramos. Não fora preciso, porque já não houvera mais pausas para a publicidade. Agora fôramos só tu e eu num envelope selado no individual. Lágrimas engolidas com um romance de papel.
Desculpara-me se corro, mas nunca me ensinaram a andar. Desculpara-me se fugira ou se misturara flashes de passado com cocktails de álcool. Restos de futuro com chutos de ficção. Desculpara-me se inventara, se criara, se fizera-nos sonhar. Mas tivera a cabeça em blackout. Já não soubera conjugar outro tempo verbal.
Buscáramos os beijos que tínhamos programado um dia na nossa agenda rasgada. Tínhamos encontrado o tempo composto. Mas não funcionara. Não fora suficiente e voltáramos ao singular. Fôramos só um, mas devagar, não corrêramos. Não fora preciso, porque já não houvera mais pausas para a publicidade. Agora fôramos só tu e eu num envelope selado no individual. Lágrimas engolidas com um romance de papel.
Desculpara-me se corro, mas nunca me ensinaram a andar. Desculpara-me se fugira ou se misturara flashes de passado com cocktails de álcool. Restos de futuro com chutos de ficção. Desculpara-me se inventara, se criara, se fizera-nos sonhar. Mas tivera a cabeça em blackout. Já não soubera conjugar outro tempo verbal.
26 febrero 2010
É azul, digo
Olho para o azul e pergunto: Como sei que não vês amarelo? Sei lá, verde, roxo, castanho. Fixo-me bem fundo nos teus olhos. Penetro na retina e procuro respostas. Isto é azul!, digo-te, a-zu-l. E tu respondes que sim, que claro que sim, que aprendeste isso na escola. Mas não consigo evitar este sentimento misturado que me garante que sempre que falamos de azul estamos, no fundo, a viajar num degradé de tons cianos, numa escala indefinida de nomes e conceitos abstractos. Afinal, quem tem a paleta definitiva das cores? Quem é o Deus, grande mestre, das misturas coloríficas?
E de perguntona perdi-me pelo mundo dos tons, misturei-os todos e, estranhamente, deram preto. A professora tinha me dito que o branco era a resposta. Mas nunca o comprovei. Teorias.
E agora estou aqui, nesta vida de tons pastel onde o azul é só um conceito distante que gosto de defender como meu.
É azul!, digo, a-zu-l. E tu respondes que sim, que claro que sim, que aprendeste isso na escola.
E de perguntona perdi-me pelo mundo dos tons, misturei-os todos e, estranhamente, deram preto. A professora tinha me dito que o branco era a resposta. Mas nunca o comprovei. Teorias.
E agora estou aqui, nesta vida de tons pastel onde o azul é só um conceito distante que gosto de defender como meu.
É azul!, digo, a-zu-l. E tu respondes que sim, que claro que sim, que aprendeste isso na escola.
22 febrero 2010
Com palitos nos olhos
E, quando parece que a vida se está a encaminhar outra vez, tremo. Tremo e temo por aquilo que posso não vir a ser. Pelos sonhos a cair do penhasco, a escorregar, ribeira abaixo, encharcados de frustração molhadas. Assusto-me com um futuro negro, sombrio, insatisfeito e acomodado. Arisco-me e duvido as decisões que tomei. Repergunto os sins e nãos que deveria ter gritado.
Mas, naquele futuro distante, já não há meia volta volver, pára o disco e toca outro. Vejo-me atrapada nos impulsos de uma jovem ambiciosa, afogada num mar de sonhos não concretizados, numa “vocação” inventada em noites de luar na fogueira de uma praia qualquer.
E depois paro, levanto-me, acordo desta espiral negra que me põe palitos nos olhos durante as profundezas da madrugada, respiro fundo e penso: foi só um pesadelo. Mais um pesadelo.
Mas, naquele futuro distante, já não há meia volta volver, pára o disco e toca outro. Vejo-me atrapada nos impulsos de uma jovem ambiciosa, afogada num mar de sonhos não concretizados, numa “vocação” inventada em noites de luar na fogueira de uma praia qualquer.
E depois paro, levanto-me, acordo desta espiral negra que me põe palitos nos olhos durante as profundezas da madrugada, respiro fundo e penso: foi só um pesadelo. Mais um pesadelo.
09 febrero 2010
Uh lá lá, minhôcá
Dizem-me que minhoca não tem movimento.
- Como não? – pergunta a centopeia que puxa, estica e vai andando, por ai, correndo, verde, pela vida.
Revolução! Juntemos pessoas apressadas, o rapper da esquina e o um ou dois megafones. Façamos uma sessão fotográfica. Clic, clic. E la vai ela, a minhoca, esplendorosa, graciosa, desfilando pela passarela com o seu vestido esvoaçante. Uma ventoinha, uma ventania, um vulcão de vento, algo. Reprovado, que os franceses não atinam com o “vê”.
Então coloquemos a dita graciosa num carrossel, numa montanha russa talvez. As palavras compostas estão na moda. Que faça uma corrida, que se junte a uma marcha, que dê um salto duplo numa piscina de ondas. Coitada, que se afoga, que as minhocas que não sabem nadar. Então façamos-lhe um rio, um lago. Sim, um verme a chapinhar numa poça. Mas de tanta agitação ficou tonta, zonza, com o mundo às voltas como se estivesse a centrifugar. Pula, estreita, treme e foca-te. Centra-te para que te passe o reboliço. Rébôlissô, diriam os galgos.
Mas se por fim os tremeliques não funcionarem, levemos a esplendorosa de viagem. Um jacto, um furação, uma expedição em anos luz. Ali poderá experimentar o calafrio de uma nova cultura, a brisa de cheiros extravagantes, o pingar arrítmico que só conseguem as gotas dos países estrangeiros. Façamo-la suar, jogar com o ping-pong da vida. Pronto, está bem, que se apaixone, que isso também é movidito. Que lhe rompam e estilhacem o coração em mil partes. Porque os amores de viagens são assim, imprevisíveis, a minhoca também deveria viver-lo. Abandonada, exausta, com o pé a arder e o coração a coçar, a estrambólica regressa a casa. Desta vez para descansar. Chega de movimento por hoje.
- Como não? – pergunta a centopeia que puxa, estica e vai andando, por ai, correndo, verde, pela vida.
Revolução! Juntemos pessoas apressadas, o rapper da esquina e o um ou dois megafones. Façamos uma sessão fotográfica. Clic, clic. E la vai ela, a minhoca, esplendorosa, graciosa, desfilando pela passarela com o seu vestido esvoaçante. Uma ventoinha, uma ventania, um vulcão de vento, algo. Reprovado, que os franceses não atinam com o “vê”.
Então coloquemos a dita graciosa num carrossel, numa montanha russa talvez. As palavras compostas estão na moda. Que faça uma corrida, que se junte a uma marcha, que dê um salto duplo numa piscina de ondas. Coitada, que se afoga, que as minhocas que não sabem nadar. Então façamos-lhe um rio, um lago. Sim, um verme a chapinhar numa poça. Mas de tanta agitação ficou tonta, zonza, com o mundo às voltas como se estivesse a centrifugar. Pula, estreita, treme e foca-te. Centra-te para que te passe o reboliço. Rébôlissô, diriam os galgos.
Mas se por fim os tremeliques não funcionarem, levemos a esplendorosa de viagem. Um jacto, um furação, uma expedição em anos luz. Ali poderá experimentar o calafrio de uma nova cultura, a brisa de cheiros extravagantes, o pingar arrítmico que só conseguem as gotas dos países estrangeiros. Façamo-la suar, jogar com o ping-pong da vida. Pronto, está bem, que se apaixone, que isso também é movidito. Que lhe rompam e estilhacem o coração em mil partes. Porque os amores de viagens são assim, imprevisíveis, a minhoca também deveria viver-lo. Abandonada, exausta, com o pé a arder e o coração a coçar, a estrambólica regressa a casa. Desta vez para descansar. Chega de movimento por hoje.
08 febrero 2010
O apelo
As minhocas têm nove corações, um para cada dor. O primeiro sofre baixinho, para dentro, com um grunhido interior que cala o som, abafa a voz, põe fita-cola nessa boca tagarela. O segundo é o que ama. O que voa com o silvar do vento, com a banda sonora do primeiro encontro, mas sabe, porque no fundo todos sabemos, que como diria Woody Allen “to love is to suffer, not to love is to suffer, to suffer is to suffer”, e então chora por antecedência o golpe futuro que terá o seu coração.
O terceiro é preguiçoso e sofre por inércia, o quarto deprime-se com a fome do mundo, as mutilações femininas e o tráfego de crianças. Que serio é esse coração. E então chega o quinto, esse histérico. É o que grita, esbofeteia, insulta e berra o mais alto que pode. Eu chamo-lhe coração-revolta, mas isso sou só eu. Ao seu lado está o seis, o cínico. O que põe um sorriso nos lábios engole o choro e segue em frente. O sete sofre por pensar demasiado e o oito sabe que, simplesmente, não pertence a este mundo.
Mas então chega o nono a passos lentos, arrastando os pés. Tem o cabelo despenteado e as olheiras roxas de sono. Ele é macro. Está apenas irritado, desiludido, farto de sofrer nos seus nove corações. Então pega num sapato e mata-se a si mesmo. A si e aos seus oito irmãos. !Suicida!, gritam os seus companheiros, enquanto o resto do reino animal aplaude.
Este é somente um apelo ao suicídio das minhocas. Pela morte limpa e digna. O próximo passo será o massacre.
O terceiro é preguiçoso e sofre por inércia, o quarto deprime-se com a fome do mundo, as mutilações femininas e o tráfego de crianças. Que serio é esse coração. E então chega o quinto, esse histérico. É o que grita, esbofeteia, insulta e berra o mais alto que pode. Eu chamo-lhe coração-revolta, mas isso sou só eu. Ao seu lado está o seis, o cínico. O que põe um sorriso nos lábios engole o choro e segue em frente. O sete sofre por pensar demasiado e o oito sabe que, simplesmente, não pertence a este mundo.
Mas então chega o nono a passos lentos, arrastando os pés. Tem o cabelo despenteado e as olheiras roxas de sono. Ele é macro. Está apenas irritado, desiludido, farto de sofrer nos seus nove corações. Então pega num sapato e mata-se a si mesmo. A si e aos seus oito irmãos. !Suicida!, gritam os seus companheiros, enquanto o resto do reino animal aplaude.
Este é somente um apelo ao suicídio das minhocas. Pela morte limpa e digna. O próximo passo será o massacre.
07 febrero 2010
A morte matemática
Um mais um será sempre igual a dois. Um menos um, zero. De súbito acredito que a existência se resume à matemática. É feita de uma história que se foi. De uma história que nós fomos. De um passado com cheiro e gosto. De quando eu sofria por coisas alheias. De conversas debaixo do lençol. De chocolate com churros. Do sorriso de surpresa. Da coisa boa e da ruim. Dos momentos que imprimimos em fotografias retocadas. Do vazio. De um medo que se foi sem susto. Do que eu pensava que seria impossível. Das tardes sem pensar. De muito. Do demasiado elevado ao cubo. E de repente parece que alguém quer acabar com tudo isto. E de dois passamos a zero. Porque a morte é matemática. Mas a vida, não.
01 febrero 2010
Eles
Ela gosta dele porque diz que ele é bonzinho. Ele não diz, mas gosta dela porque sem ela a sua vida não teria graça nenhuma. Eles reclamam, implicam e reviram os olhos. Dão beijinhos, abraços e gargalhadas em uníssono. Ela gosta de ténis e ele de futebol, ele de ler e ela de ouvir. Qualquer um diria que se completam. Ignorantes. Eles são tudo menos um cliché.
Desde que os conheço, proclamam orgulhosos que no seu vocabulário não existe nem “tu”, nem “eu” e então lá tivemos todos de aprender a conjugar os verbos em “nós”.
- Duh, que bobagem! – diziam os adolescentes com sentido de ridículo.
Deve ser defeito meu, de memória selectiva, mas olhando para trás, só me lembro de terem discutido duas vezes. Em ambas as ocasiões chorei em silêncio. Chorei porque queria que vissem o mundo pelos meus olhos, que percebessem que o que conta piadas tem de acabar com a miudinha que se ri, que a carinhosa termina sempre com o armado em machão e que o que lê a secção de politica precisa de alguém que lhe conte sobre o apartado das fofocas. E o resto são peanuts.
Mas, fosse como fosse, sempre que o mundo dava cambalhotas ali ressurgiam eles (ou deveria dizer nós) naquela imagem imbatível de duas mãos dadas pela vida. Pela vida e por um telefonema de feliz Páscoa.
Porque eles são assim, eternos.
Cresci pensando que seria fácil imita-los, ser feliz. Aos poucos e largos sofrimentos descobri que não, que não era tão simples seguir a sua fórmula secreta de sucesso eterno. Que era preciso mais do que um conhecimento correcto da gramática para aprender a conjugar os verbos na primeira pessoa do plural. Mas que por uma ou outra misteriosa razão, eles tinham encontrado esse plus.
Tudo isso, ou talvez esta seja apenas a visão torcida de uma filha babada.
Desde que os conheço, proclamam orgulhosos que no seu vocabulário não existe nem “tu”, nem “eu” e então lá tivemos todos de aprender a conjugar os verbos em “nós”.
- Duh, que bobagem! – diziam os adolescentes com sentido de ridículo.
Deve ser defeito meu, de memória selectiva, mas olhando para trás, só me lembro de terem discutido duas vezes. Em ambas as ocasiões chorei em silêncio. Chorei porque queria que vissem o mundo pelos meus olhos, que percebessem que o que conta piadas tem de acabar com a miudinha que se ri, que a carinhosa termina sempre com o armado em machão e que o que lê a secção de politica precisa de alguém que lhe conte sobre o apartado das fofocas. E o resto são peanuts.
Mas, fosse como fosse, sempre que o mundo dava cambalhotas ali ressurgiam eles (ou deveria dizer nós) naquela imagem imbatível de duas mãos dadas pela vida. Pela vida e por um telefonema de feliz Páscoa.
Porque eles são assim, eternos.
Cresci pensando que seria fácil imita-los, ser feliz. Aos poucos e largos sofrimentos descobri que não, que não era tão simples seguir a sua fórmula secreta de sucesso eterno. Que era preciso mais do que um conhecimento correcto da gramática para aprender a conjugar os verbos na primeira pessoa do plural. Mas que por uma ou outra misteriosa razão, eles tinham encontrado esse plus.
Tudo isso, ou talvez esta seja apenas a visão torcida de uma filha babada.
29 enero 2010
Ali
Ali, onde a névoa esconde o céu azul das tardes de primavera com pé na agua. Onde se caminha na rua, porque as rodas não compensam e os carris subterrâneos são apenas um sonho longínquo de um político populista. Naquele lugar, onde o mar toca nas nuvens e fá-las derreter. Onde o pára-aguas é um eterno companheiro de viagens.
Ali, onde o jornal se lê no café da esquina e a tapa tem um gosto de óleo usado que insulta o gourmet. Onde se oferecem sorrisos, abraços, “há quanto tempo” e a melhor tortilha do mundo. Onde os corredores cheiram a páginas de jornal viradas e das cabeças saem letras com gosto de tinta de papel.
Ali, onde o ar tem cheiro a casa e as ruas uma estranha sensação de lar.
Ali, onde o jornal se lê no café da esquina e a tapa tem um gosto de óleo usado que insulta o gourmet. Onde se oferecem sorrisos, abraços, “há quanto tempo” e a melhor tortilha do mundo. Onde os corredores cheiram a páginas de jornal viradas e das cabeças saem letras com gosto de tinta de papel.
Ali, onde o ar tem cheiro a casa e as ruas uma estranha sensação de lar.
25 enero 2010
De uma maneira muito estranha
De uma maneira muito estranha eu um dia me apaixonei. Assim, ao de leve, de mansinho, quase sem sentir. E por uma razão ou outra, o fardo recaiu sobre ti, tão tu mesmo nessa tua vidinha de ir e vir. Então meti-me no meio, revirei-a e amachuquei os cantos, fui comendo-a aos bocadinhos, até que um dia deu enjoo.
De uma maneira muito estranha eu um dia desapaixonei. E então perguntaste o que era de mim, o mim de antes, dos momentos, dos agoras para sempre. E eu pus cara de interrogação e depois de enfado. Perguntar ofende, sim senhor.
Caminhávamos para seguir caminhando e sorriamos para seguir vivendo e foi então que um dia, de uma maneira muito estranha, éramos amigos outra vez. Sempre soube que o nosso era um caminho sem retorno.
De uma maneira muito estranha eu um dia desapaixonei. E então perguntaste o que era de mim, o mim de antes, dos momentos, dos agoras para sempre. E eu pus cara de interrogação e depois de enfado. Perguntar ofende, sim senhor.
Caminhávamos para seguir caminhando e sorriamos para seguir vivendo e foi então que um dia, de uma maneira muito estranha, éramos amigos outra vez. Sempre soube que o nosso era um caminho sem retorno.
20 enero 2010
Um dia
Ela, que guardava numa caixinha de cartão todas as cartas que nunca tinha enviado. Todas as que nunca tinha tido a coragem de selar. Que fazia planos debaixo do chuveiro e cantava para si mesma antes de adormecer. Que acreditava que a felicidade tinha cheiro de chá de camela com raspas de laranja, que coleccionava sonhos de algodão doce. Ela, que nunca usava saltos altos para poder estar mais perto do chão, que quando punha saias passava o dia a rodopiar, que acreditava na bondade humana. Ela, que passava horas a ensaiar hipotéticas conversas futuras, e eu digo, e ele diz, e eu respondo. Ela, que nunca tinha coragem de dizer o planeado. Ela, que quando fechava os olhos via azul, um sorriso rasgado e um domingo na lareira. Até.
Até ao dia.
Até que ela
Um dia.
Acordou para a vida.
Até ao dia.
Até que ela
Um dia.
Acordou para a vida.
18 enero 2010
Duas moscas
Somos duas moscas. Desculpa dizer-te isto assim sem preparação prévia, mas chegou a hora, não posso guardar mais este segredo.
Sim, enfrenta a realidade. Alimentamo-nos da nossa própria matéria em autodestrução, dos fotogramas futuros impressos em tardes de cinema, das promessas de amor engolidas com um copo de coca-cola, daquelas pequenas pinceladas de realidade que não queremos deixar sucumbir.
Somos um insecto pequeno, preto e asqueroso. Apenas uns centímetros de carne esponjosa e peluda que descansa em excrementos. Um animal irracional que já nasce com data de caducidade, que é como quem diz, com um obituário escrito e a tumba montada. Somos alimento de outros bichos, assunto de conversa nas mesas dos cafés.
- Raio da mosca!
E da-lhe uma patada e outra e outra ainda. E nós ali, heroicamente, aguentando um e mais um safanão. Porque somos assim, sempre o fomos. Fatídicos, autodestructivos, masoquistas. E persistentes. Insistimos, achamos que um dia conseguiremos contrariar a lógica. ¡Ingénuos!, nós.
E, como moscas que somos, a nossa morte aproxima-se, já sabes, nascemos para isso. Pensa bem, não há jornada que não termine, nem vida que não pereça. E então aqui estamos nós, mutilados, feridos e humilhados pela fragilidade humana e pela imbecil crença de que seremos melhores, super heróis modernos com poderes mágicos.
Não engonhemos mais. Que venha logo a morte e acabe, com uma facada definitiva, esta desgraçada, intensa e longa vida de uma semana que tivemos.
Fim, escreveu-se com letras de sangue.
Sim, enfrenta a realidade. Alimentamo-nos da nossa própria matéria em autodestrução, dos fotogramas futuros impressos em tardes de cinema, das promessas de amor engolidas com um copo de coca-cola, daquelas pequenas pinceladas de realidade que não queremos deixar sucumbir.
Somos um insecto pequeno, preto e asqueroso. Apenas uns centímetros de carne esponjosa e peluda que descansa em excrementos. Um animal irracional que já nasce com data de caducidade, que é como quem diz, com um obituário escrito e a tumba montada. Somos alimento de outros bichos, assunto de conversa nas mesas dos cafés.
- Raio da mosca!
E da-lhe uma patada e outra e outra ainda. E nós ali, heroicamente, aguentando um e mais um safanão. Porque somos assim, sempre o fomos. Fatídicos, autodestructivos, masoquistas. E persistentes. Insistimos, achamos que um dia conseguiremos contrariar a lógica. ¡Ingénuos!, nós.
E, como moscas que somos, a nossa morte aproxima-se, já sabes, nascemos para isso. Pensa bem, não há jornada que não termine, nem vida que não pereça. E então aqui estamos nós, mutilados, feridos e humilhados pela fragilidade humana e pela imbecil crença de que seremos melhores, super heróis modernos com poderes mágicos.
Não engonhemos mais. Que venha logo a morte e acabe, com uma facada definitiva, esta desgraçada, intensa e longa vida de uma semana que tivemos.
Fim, escreveu-se com letras de sangue.
17 enero 2010
Uma farsa esquizofrénica
Vivo vidas entrelaçadas. Vivo a existência de quem quer ser e ainda não é. Aquela que tem gosto de tarte de limão com cobertura de suspiro. A vida do eterno aspirante a coisa alguma, de um cavaleiro que parte sem rumo para expedições em países impronunciáveis. Um poço que nunca acabará de encher, um labirinto cujo final estará eternamente fora de alcance. Vivo uma vida sem alcance, sem alça, sem capuz e sem asa, só sonho. Vivo uma vida de sonho.
Mas sou agente disfarçada de menina, dançarina vendida, polícia camuflada. No fundo, sou uma farsa esquizofrénica que vai costurando pedaços de diferentes vidas num tecido que, no fim das contas, não é mais que caos.
E nesse caos cabe tudo. Entra a senhora trabalhadora e a rapariga marota. Se espremermos bem, há espaço para o aventureiro de pés descalços, para o funk da favela e o after-party das seis da manhã. É só remexer um pouco que lá esta ela, a menina literatura, os filmes de domingo à tarde e a música alternativa de calças roxas. Há a rapariga livre, independente, hiperactiva, a que tem voz de charme e a que sonha com uma casa de piscina e churrasqueira no terraço.
O problema, porque não há história sem fricção, é quando as vidas se misturam e a esquizofrenia confunde-se. Então recebemos um email para a senhora responsável e logo em seguida outro que recorda os dias de sol e praia em viagens saltimbancos. E então senti-nos traidores, farsantes, embusteiros. Porque estamos a jogar um jogo duplo e este não tem bónus no final. Sabemos que um dia a vida pagará factura e, entretanto, lançamo-nos e entranhamo-nos cada vez mais fundo nesta vida de multifaces à espera de encontrar alguém que, quem sabe, compreenda essa nossa pequena doença incurável.
Mas sou agente disfarçada de menina, dançarina vendida, polícia camuflada. No fundo, sou uma farsa esquizofrénica que vai costurando pedaços de diferentes vidas num tecido que, no fim das contas, não é mais que caos.
E nesse caos cabe tudo. Entra a senhora trabalhadora e a rapariga marota. Se espremermos bem, há espaço para o aventureiro de pés descalços, para o funk da favela e o after-party das seis da manhã. É só remexer um pouco que lá esta ela, a menina literatura, os filmes de domingo à tarde e a música alternativa de calças roxas. Há a rapariga livre, independente, hiperactiva, a que tem voz de charme e a que sonha com uma casa de piscina e churrasqueira no terraço.
O problema, porque não há história sem fricção, é quando as vidas se misturam e a esquizofrenia confunde-se. Então recebemos um email para a senhora responsável e logo em seguida outro que recorda os dias de sol e praia em viagens saltimbancos. E então senti-nos traidores, farsantes, embusteiros. Porque estamos a jogar um jogo duplo e este não tem bónus no final. Sabemos que um dia a vida pagará factura e, entretanto, lançamo-nos e entranhamo-nos cada vez mais fundo nesta vida de multifaces à espera de encontrar alguém que, quem sabe, compreenda essa nossa pequena doença incurável.
13 enero 2010
Pernas para o ar
A vida está de ponta cabeça. Comecemos, então, pelos pés que tanto querem andar, sair, mexer-se. Que sonham em percorrer o mundo de palmas no chão, que querem fugir mas quando dão o primeiro passo apercebem-se que os atacadores deram um nó. Malditas vidas entrelaçadas.
Dos pés ao joelho, esse bastardo. Tinha de nascer com um osso deficiente. O menisco deslocado, dizem os médicos, mas eu não acredito. Acho que me dói só porque sim, por teimosia, para lembrar-me diariamente da minha imperfeição. Não que eu precise, mas ele insiste.
Do joelho salto para a barriga, esse espelho da alma. Quando estamos tristes, o chocolate consola, felizes, a cerveja celebra, apáticos, as gomas alegram, deprimidos, a fome cava mais fundo. E quando o mundo está ao contrário? Comemos e vamos ao ginásio gastar calorias. Para depois poder comer mais.
E quase sem perceber passamos da barriga aos ombros, esses, os que aguentam com o peso da mochila. A mochila que nos levará mais longe. A nossa companheira de onde quisermos. Porque, acreditem em mim, quando mais afastados estamos, menos peso sentem os ombros.
A cabeça, coitada, está meio zonza. "Não faças o pino que o sangue vai-te todo para a cabeça", diziam os professores. Não a mim, claro, que nunca tive jeito para a ginasitca. A cabeça, que no fundo é só uma carapaça, esse tal utencilio tão valorizado pela sociedade moderna. Esse órgão pensa, dizem os espertos. Não, quem manda é o coração, contestam os românticos. No fundo, tudo isto são só enzimas.
E então chegamos ao cabelo, malandro. Queremos fugir, mudar e disfarçar. Treinamos cabelereiros, odiamo-los de morte, pomos gel, espuma e creme modelador. Porque no fundo, a pior parte de ter o mundo virado ao contrario é que não há forma de conseguir pôr o cabelo como deve ser. Acho que no final das contas é ai que reside o meu problema.
Dos pés ao joelho, esse bastardo. Tinha de nascer com um osso deficiente. O menisco deslocado, dizem os médicos, mas eu não acredito. Acho que me dói só porque sim, por teimosia, para lembrar-me diariamente da minha imperfeição. Não que eu precise, mas ele insiste.
Do joelho salto para a barriga, esse espelho da alma. Quando estamos tristes, o chocolate consola, felizes, a cerveja celebra, apáticos, as gomas alegram, deprimidos, a fome cava mais fundo. E quando o mundo está ao contrário? Comemos e vamos ao ginásio gastar calorias. Para depois poder comer mais.
E quase sem perceber passamos da barriga aos ombros, esses, os que aguentam com o peso da mochila. A mochila que nos levará mais longe. A nossa companheira de onde quisermos. Porque, acreditem em mim, quando mais afastados estamos, menos peso sentem os ombros.
A cabeça, coitada, está meio zonza. "Não faças o pino que o sangue vai-te todo para a cabeça", diziam os professores. Não a mim, claro, que nunca tive jeito para a ginasitca. A cabeça, que no fundo é só uma carapaça, esse tal utencilio tão valorizado pela sociedade moderna. Esse órgão pensa, dizem os espertos. Não, quem manda é o coração, contestam os românticos. No fundo, tudo isto são só enzimas.
E então chegamos ao cabelo, malandro. Queremos fugir, mudar e disfarçar. Treinamos cabelereiros, odiamo-los de morte, pomos gel, espuma e creme modelador. Porque no fundo, a pior parte de ter o mundo virado ao contrario é que não há forma de conseguir pôr o cabelo como deve ser. Acho que no final das contas é ai que reside o meu problema.
10 enero 2010
Uma questão de respeito
Ele está ai, escondido atrás das portas, como o pó e o cotão de um quarto recém arrumado. Ele chegará, um dia chegará. Ou pelo menos isso me dizem. De comboio expresso, avião de baixo custo ou ténis desgastados. Seja como for, naquele dia, o dia em que ele aparecer, se ele aparecer, vou correr para os seus braços, qual filme de Hollywood e, contrariando todas as expectativas, num twist absolutamente inesperado, vou dar-lhe um valente bofetão e perguntar-lhe enquanto bato com o pé de birra: “E onde estiveste este tempo todo?”
Onde estiveste nas noites de frio com a janela estragada, nas manhãs de preguiça enroladas no sofá, nos passeios pelo parque, no pequeno-almoço do café da esquina. Já busquei por toda a casa, nas gavetas do trabalho e nos bolsos do casaco. Revisei a lista telefónica e a loja do senhor Josito. Não estás, mas insistem em dizer-me que estás, que chegarás, que vens a caminho.
E eu sou menina teimosa. E, por capricho, espero. Pacientemente, aguardo que esta expectativa prolongada chegue ao fim. Que eu possa unir-me ao mundo neste sorriso pasmacento estampado na cara de todos aqueles que já tiveram o seu prémio.
Mas não te enganes, meu querido, não te enganes, porque quando chegares não te esperarão mil e muitas noites de amor ronhento e vozinha de charme. Quando chegares, se chegares, teremos muitas contas a ajustar. Porque isso de demorar tanto, meu caro, é uma falta de respeito. Os teus pais não te deram educação?
Onde estiveste nas noites de frio com a janela estragada, nas manhãs de preguiça enroladas no sofá, nos passeios pelo parque, no pequeno-almoço do café da esquina. Já busquei por toda a casa, nas gavetas do trabalho e nos bolsos do casaco. Revisei a lista telefónica e a loja do senhor Josito. Não estás, mas insistem em dizer-me que estás, que chegarás, que vens a caminho.
E eu sou menina teimosa. E, por capricho, espero. Pacientemente, aguardo que esta expectativa prolongada chegue ao fim. Que eu possa unir-me ao mundo neste sorriso pasmacento estampado na cara de todos aqueles que já tiveram o seu prémio.
Mas não te enganes, meu querido, não te enganes, porque quando chegares não te esperarão mil e muitas noites de amor ronhento e vozinha de charme. Quando chegares, se chegares, teremos muitas contas a ajustar. Porque isso de demorar tanto, meu caro, é uma falta de respeito. Os teus pais não te deram educação?
05 enero 2010
O menino caladinho
O menino caladinho tinha um olhar tímido e um punhado de conversas silenciosas. Mantinha a inexplicável empolgação de uma criança e um rol de “desculpa”, “obrigado” e “com licença” que tanto orgulharia os seus pais.
Era rapaz de comunicação, mas comunicar não era o seu forte. “É que eu me enrolo, sabe?”, justificava, e lá ia ele enrolando-se no fio das suas próprias historias. Até que o fio enroscava-se de tal maneira que, de repente, dava nó. E eu ria, gargalhava e desfrutava da sua trapalhice. “É que eu gosto mais de contemplar”, explicava. E isso, claro, dava azo a mais risada.
Mas para menino calado, até tinha das suas. Gostava de arte, de literatura, de Bob Dylan e de pôr gel no cabelo antes de dormir: assim já acordava penteado. Sonhava com história e com ruínas romanas. Os museus eram a sua casa.
Dizia que os óculos usavam-se a meio do nariz e então eu chamava-o de velho e ele irritava-se, mas não muito, porque nada superava a sua ira de quando eu soltava um “é que você é um adolescentezinho” no meio de alguma situação empolgante. Dizem que a crítica faz parte do charme, ou isso defendo eu.
Mas os dias passaram e ele foi soltando os nós: e não é que o menino caladinho falava?
E se falava.
Contava do pai, da mãe e do trabalho. Da rotina que era viver. Queixava-se dele mesmo e da sua atitude, que queria ser melhor. Que não conseguia ser melhor. E depois vieram as histórias. As entrevistas aos deputados, os professores despedidos, os amigos e o eterno amor platónico. Amar é sofrer, disse um dia entre uma batata frita e um golo de Coca Cola.
Mas a magia acabou logo e precisamente quando ele, o menino caladinho, estava tão tagarela, o seu avião partiu. Deixou para trás uma garganta rouca de bares e aventuras, e ao despedir-se, deu-me um abraço forte e balbuciou: “Obrigado”.
O menino caladinho tinha voltado a calar-se.
Era rapaz de comunicação, mas comunicar não era o seu forte. “É que eu me enrolo, sabe?”, justificava, e lá ia ele enrolando-se no fio das suas próprias historias. Até que o fio enroscava-se de tal maneira que, de repente, dava nó. E eu ria, gargalhava e desfrutava da sua trapalhice. “É que eu gosto mais de contemplar”, explicava. E isso, claro, dava azo a mais risada.
Mas para menino calado, até tinha das suas. Gostava de arte, de literatura, de Bob Dylan e de pôr gel no cabelo antes de dormir: assim já acordava penteado. Sonhava com história e com ruínas romanas. Os museus eram a sua casa.
Dizia que os óculos usavam-se a meio do nariz e então eu chamava-o de velho e ele irritava-se, mas não muito, porque nada superava a sua ira de quando eu soltava um “é que você é um adolescentezinho” no meio de alguma situação empolgante. Dizem que a crítica faz parte do charme, ou isso defendo eu.
Mas os dias passaram e ele foi soltando os nós: e não é que o menino caladinho falava?
E se falava.
Contava do pai, da mãe e do trabalho. Da rotina que era viver. Queixava-se dele mesmo e da sua atitude, que queria ser melhor. Que não conseguia ser melhor. E depois vieram as histórias. As entrevistas aos deputados, os professores despedidos, os amigos e o eterno amor platónico. Amar é sofrer, disse um dia entre uma batata frita e um golo de Coca Cola.
Mas a magia acabou logo e precisamente quando ele, o menino caladinho, estava tão tagarela, o seu avião partiu. Deixou para trás uma garganta rouca de bares e aventuras, e ao despedir-se, deu-me um abraço forte e balbuciou: “Obrigado”.
O menino caladinho tinha voltado a calar-se.
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